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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Lucrecia Cristina






Quando descobriu que não lhe restou um centavo sequer após a morte do marido, dona Aureliana tratou de ensinar às filhas tudo o que podia para que fizessem bons casamentos e garantissem a sobrevivência da pequena família. Lucrecia, a mais velha, não possuía o menor traço de inteligência, mas era bonita o suficiente para atrair um bom partido se seguisse os conselhos da mãe. Eleonora, a caçula, possuía uma beleza rara e uma inteligência perversa, e só não conseguiria realizar os sonhos da mãe se teimasse em manter um comportamento ordinário, que era sua marca registrada.

Dona Aureliana começou a fazer uma pesquisa acurada dos possíveis pretendentes da região e soube que, com um pouco de sorte poderia não só sair da situação miserável na qual se encontrava, como se tornar uma senhora de respeito, apagando completamente seu passado de degradação junto a um marido fraco e sem sobrenome que não escondia de ninguém o fato de tê-la conhecido enquanto ainda trabalhava para dona Iolanda. Soube que bem perto dali, numa vila isolada entre as colinas do norte, na divisa entre Tornados e as Terras Esquecidas, havia um viúvo dono das terras da região, que procurava uma nova esposa para ajudá-lo na educação de seus três filhos. Dona Aureliana então vendeu sua casa, comprou roupas apresentáveis e dirigiu-se para as terras do senhor Alexandre Justino, decidida a fazê-lo casar-se com Lucrecia.

 Fez-se passar por uma senhora distinta que voltava de uma visita a uma prima doente e estava a caminho da Capital. Pediu a Alexandre hospedagem por alguns dias, pois não se sentia bem. Alexandre Justino, como o cavalheiro que era não permitiria jamais que uma senhora adoentada seguisse viagem, muito menos sem a presença de um homem. Hospedou as mulheres com alegria e jamais poderia imaginar a real intenção das desconhecidas. Dona Aureliana ardilosamente convenceu Lucrecia, que odiava crianças, a tratar com carinho os filhos de Alexandre de tal forma que ele acabou por fazer a proposta de casamento, comovido pela dedicação das mulheres aos seus três tesouros. Casou-se pouco tempo depois e, nos dez anos que se seguiram, a mulher se mostrou excelente esposa e madrasta.

Eleonora também se casou com um homem ainda mais rico que Alexandre, e levou sua mãe para morar com ela. Vinha muito raramente visitar Lucrecia, mas o suficiente para certificar-se de que tudo caminhava como deveria entre a irmã e o marido, e para estreitar o laço entre as duas famílias. Nessas ocasiões, Eleonora não conseguia esconder sua infelicidade. Seu marido era um homem experiente, e percebeu logo no início do casamento que se tratava de uma questão de sobrevivência ser mais esperto que a esposa. Após as bodas, passou a tratá-la com crueldade e desprezo, e só esteve com ela até gerar um herdeiro. Quase não se viam, pois ele passava a maior parte do tempo em um apartamento na cidade, onde mantinha uma amiga de quem gostava muito por poder confiar-lhe a vida.  Só mandava chamar a esposa quando precisava representar o teatro da família feliz, e Eleonora não sabia dizer que diferença havia entre ela ou qualquer dos objetos de decoração dos lugares que freqüentava. Sua tristeza era tanta que em poucos anos passou a ser uma caricatura da mulher que fora um dia; sua beleza murchou, parecia uma velha a quem esqueceram num asilo.

Lucrecia teve um pouco mais de sorte, pois se casou com um homem de coração puro, que a cobria de mimos, e só não a amava mais que a seus filhos. O amor que ele dedicava a Bernardo, Constância e Valentina era a pedra em seu sapato. Seu ódio se agravou quando descobriu que não poderia ter filhos. Sabia que teria que dividir a herança com os enteados quando o pai morresse e isso a afligia porque a maioria dos bens pertencia aos três irmãos por terem sido herança da mãe. Caso Alexandre a deixasse viúva, ficaria com pouquíssimas coisas e não podia aceitar esse fato.  O marido determinou em testamento que Lucrecia ficaria com a casa, mas as terras seriam dos filhos e eles ainda teriam o direito de morar junto à madrasta enquanto vivessem. Todos os outros bens pertenciam a Bernardo e as irmãs, o pai apenas os administrava desde a morte da primeira esposa. As casas na cidade, as jóias, uma fortuna em dinheiro, e todos os animais. No caso de morte de um dos herdeiros, os outros receberiam a herança. Lucrecia só perderia tudo se contraísse novas núpcias. Alexandre pensava que, assim, estaria resguardando a mulher caso ficasse viúva. O problema residia justamente aí, há alguns anos Lucrecia mantinha um caso secreto com um caminhoneiro que fazia o transporte das cargas da fazenda, e sonhava com o dia que estaria livre e rica para viver com seu verdadeiro amor. Obviamente, o testamento tornou seu sonho impossível de ser realizado enquanto os enteados vivessem.

Quando a Guerra Civil estourou e tanto Alexandre quanto Bernardo passaram anos longe de casa, Valentina e Constancia puderam ver quem realmente era a madrasta. Lucrecia as fazia trabalhar de sol a sol, não lhes permitia estudar ou ler, nem ter qualquer distração que não fosse o trabalho. Dava-lhes restos de comida para se alimentar, tirou-lhes todos os vestidos e as fez dormir com as empregadas para alugar os quartos aos soldados e ganhar algum dinheiro alegando que a casa lhe pertencia e precisava se precaver para alguma emergência. Com o tempo, a mulher enlouquecera. Uma noite, juntou todos os retratos da mãe dos enteados e ateou fogo. Enquanto a madeira estalava e as meninas choravam, Lucrecia ria e repetia sem parar que a saudade nos enfraquece. Fazia da perseguição às enteadas sua maior distração.

A guerra acabou pouco antes de completar sete anos e Bernardo foi mandado para casa com o pai muito doente. Lucrecia os recebeu com o cuidado fingido de antes e a fazenda voltou a funcionar como nos seus melhores tempos. Desdobrou-se em vigílias, mais pelo medo de ser desmascarada quando o marido recuperasse a saúde do que pelo temor que Alexandre morresse. Constância e Valentina contaram ao irmão tudo o que havia acontecido durante a ausência dos homens da casa. Bernardo chamou a madrasta para uma conversa definitiva. Lucrecia não viu outra saída a não ser a de se desculpar com os enteados, implorando, entre lágrimas, que considerassem que havia enlouquecido com a guerra e agiu impulsionada pelo medo que nunca foi bom conselheiro. Pediu que avaliassem todos os anos de afeto que viveram antes que a tragédia atingisse o país e lhes pegasse emprestado os homens da família, deixando-a com uma responsabilidade para a qual não estava preparada, finalmente, apelou para a generosidade dos enteados para que esse período tenebroso não fosse revelado a Alexandre. Bernardo não se deixou enganar, decidiu que a madrasta não era mais de confiança e avisou a ela que contaria ao pai tudo o que havia acontecido. Lucrecia tinha apenas o tempo necessário para que Alexandre estivesse forte o bastante para suportar tanta decepção.

Com ódio mortal dos enteados, a madrasta começou a planejar matá-los. Concluiu que só assim estaria livre de ser denunciada. Perguntou a mãe o que fazer e foi orientada por dona Aureliana a comprar dois bolos iguais e envenenar um para que os enteados comessem. O outro serviria para entregar a polícia caso desconfiassem do envenenamento e, assim, tirar de sobre ela qualquer suspeita.

No dia seguinte, Lucrecia fez como planejado e comprou os bolos e o veneno. Seguiu para casa ansiosa e satisfeita com a engenhosidade da mãe. Ao chegar à fazenda, subiu ao quarto de hóspedes para não ser surpreendida, injetou veneno no doce e foi para a cozinha confiante. Para saber a diferença entre os bolos, tirou uma lasca da cobertura do que estava envenenado.  Ordenou que o lanche fosse servido aos enteados e cometeu o erro de mandar a cozinheira guardar o outro bolo na despensa acreditando que assim ficaria ainda mais difícil imputar-lhe alguma culpa. Foi essa falha que determinou o rumo da história de Lucrecia.  Numa confusão, dessas naturais do movimento diário de uma casa, a empregada trocou os bolos e Bernardo, Constância e Valentina comeram até o último pedaço do que não estava envenenado. Quando foi ao quarto do pai para ficar no lugar da madrasta, Valentina comentou que não passava bem por ter exagerado no lanche. Lucrecia entendeu que havia obtido sucesso em seu plano e que agora se tratava de alguns minutos para finalmente ser rica e livre. Alexandre era apenas um detalhe. Todos acreditariam que morrera de desgosto ao receber a notícia do fim trágico dos filhos. Sem poder caber em si de felicidade, Lucrecia pediu à cozinheira que lhe servisse o bolo da despensa, que comeu com prazer, cheia de planos para o futuro. Em pouco tempo sentiu-se estranha e resolveu virar o prato do bolo. Encontrou a marca de seu dedo no glacê e desesperou-se, mas já era tarde. Depois de alguns minutos, Adalgisa, a cozinheira, ouviu um barulho de engasgo seguido pelo prato ao chão. Chegou à cozinha a tempo de ouvir a patroa dizer com dificuldade: Imprestável!




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