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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

João Mazelas e a Alma Penada.







João Eurico Martinez era coveiro. Trabalhava no Cemitério Municipal de Cabeceira do Rio Seco há tanto tempo que já nem se lembrava de ter feito outra coisa na vida. Há alguns anos fizera planos de se mudar com a família para um sítio a caminho de Tornados, mas quatorze dias antes da mudança um aguaceiro desceu pela cidade arrastando quase tudo e todos, inclusive a mulher e os oito filhos de João. Só lhe sobrou Quixote, o cachorro, que estava com ele na cidade vizinha.
Depois desse descalabro, o coveiro ficou conhecido como João Mazelas e tornou-se amargurado pelo arrependimento de ter deixado a família desamparada, mesmo com a insistência da mulher para que ficasse até que os ventos espantassem as nuvens assustadoras que se formavam. Enquanto os outros moradores se uniram em mutirões para desobstruir as estradas e tirar da cidade aquela cara de apocalipse, João se mudou com Quixote para o casebre dentro do cemitério que, miraculosamente, permanecia intacto. Passou a viver isolado a maior parte do tempo e, nas raras vezes que visitava a cidade, não se podia ouvir sua voz. Comunicava-se com gestos e grunhidos, e quando não conseguia se fazer compreender, ia embora espraguejando e chutando o chão, deixando as pessoas apavoradas. Por esse comportamento excêntrico, ganhou fama de louco. A simples menção de seu nome fazia os pequeninos obedecerem aos pais de imediato. Não demorou a tornar-se uma lenda na pequena cidade, e até algumas matérias saíram na Gazeta Cabeceirense sobre aquele ícone da catástrofe local. Para fugir ao assédio de curiosos, refugiava-se nos escombros de sua antiga casa, que só estava a salvo das pessoas porque era necessário atravessar o Bosque dos Perdidos para ter acesso a ela. Ora, o Bosque era um dos lugares proibidos pelos moradores de toda aquela região, juntamente com as Terras das Rotas Diagonais e A Floresta Descomunal formavam o que havia de mais perigoso no pequeno mundo conhecido por eles, ameaçava-lhes a existência e ninguém quer deixar de existir. Não temiam a morte, mas o desaparecimento, o exílio.
Ironicamente, esse era o maior desejo de João. Queria poder evaporar. Preferia ter ido embora com a família para onde quer que eles tenham ido. Qualquer coisa teria sido melhor que aquela sensação de não pertencer mais a lugar nenhum que agora o perseguia como um inimigo interno, aprisionado em sua mente e coração, respirando junto a ele, se alimentando com ele, destruindo-o de dentro para fora numa morte lenta e dolorosa. Para aliviar um pouco sua dor, passava todo o tempo livre contemplando os restos da vida que tivera. Contrário ao que se esperava, o lugar mantinha a mesma atmosfera tranquila dos dias felizes que passara com a família. Suas visitas eram uma busca desesperada de consolo e paz. E de lembranças. Sentia-se próximo aos parentes, e se fechasse os olhos ainda podia fingir que chupava uma laranja debaixo das árvores observando as brincadeiras dos meninos. Podia jurar que o cheiro de comida o convidava para o almoço, e até conseguia ouvir o batucar das panelas.
Os moradores de Cabeceira acreditavam que o lugar era amaldiçoado. Contavam que uma família havia morrido ali a muitos anos de uma doença estranha. Curiosamente, o pai foi o único sobrevivente, exatamente como agora. O homem chegou a ser acusado de envenenar a mulher e os filhos, e acabou fugindo antes que fosse morto por populares. Depois disso a casa ficou vazia durante anos, até que João fosse morar com a família. Apesar de ser um homem simples, João Eurico não dava ouvidos a crendices, atribuía suas desventuras ao curso natural da vida e sabia que coisas ruins acontecem a bons e maus. Não havia revolta em seu coração, mas também não havia espaço. A dor tomou conta de tudo o que restou.
No dia que a esposa faria anos, João se levantou ainda de madrugada, passou um café sem açúcar, tomou de um gole uma xícara bem quente e partiu para a antiga casa colhendo flores pelo caminho para depositar debaixo da amoreira.  Andava despreocupadamente e até um pouco feliz, como se fosse entregar o ramalhete em mãos. Era como se a caminhada durasse alguns minutos, e não a hora e meia que na verdade lhe custava. Quando atravessava a última clareira, sabia que podia olhar na direção do lugar e avistar a cozinha que não havia sofrido nenhum dano, mas nesse dia, ao erguer os olhos para a casa, viu o vulto de uma figura feminina atravessar a janela e temeu. Por um instante acreditou em tudo o que as pessoas lhe disseram sobre a história do lugar e correu o mais que pode, seu coração estava indeciso sobre se devia parar ou bater cada vez mais rápido tamanho o medo que se apoderara do homem. Com certeza a esposa que havia sido envenenada pelo marido ainda vivia ali. Por isso ele escutava barulho na cozinha quando dormia. Tinha atribuído tudo aos ratos, mas agora já duvidava dos roedores.
Quando finalmente alcançou o cemitério estava ensopado de suor gelado, e os olhos esbugalhados fizeram Quixote pular nos degraus da varanda e latir para o portão. Correu para dentro de casa e vasculhou tudo procurando a Bíblia ignorada por tantos anos. Precisava esquecer aquele vulto ou não pararia de tremer nunca mais. Leu os Salmos até se sentir mais calmo, mas trabalhou aquele dia com a sensação de que os mortos acordariam de seu sono eterno e levantariam dos caixões como se da própria cama. À noite custou a dormir, mas ao levantar pela manhã sentia-se mais curioso que apavorado. Pensou em retornar ao lugar e tirar a prova do que significava aquela aparição. Partiu levando Quixote, para se sentir mais protegido.
Ao avistar a cozinha, parou por alguns minutos esperando que o vulto desse sinal de sua presença. Nada aconteceu. Ganhou confiança e aproximou-se lentamente, mas estacou diante da soleira da porta assustado com o que vira. Várias tulipas apareceram do dia para a noite, enfileiradas no que antes era o caminho para a porta principal. Aquilo para ele foi a confirmação de que o sobrenatural rondava sua vida. !
Voltou para o cemitério disposto a descobrir o que o além queria com ele. Talvez estivesse vivo por engano e agora precisasse consertar o erro de ter abandonado seus amados a própria sorte no último dia de vida deles. Como não tinha nenhum enterro, felizmente, aproveitou para dar uma caprichada na aparência geral dos jazigos perpétuos, que eram os mais esquecidos em sua rotina. Ao entrar na parte nobre do cemitério, ficou impressionado pela primeira vez com aqueles anjinhos e suas harpas, e teve a impressão de uma ou outra fotografia ter-lhe mandado uma piscadela. Sacudiu a cabeça e murmurou de si para si que estava enlouquecendo. Tantos anos trabalhando com mortos que começava a variar! O dia terminou sem que pudesse colocar flores nos vasinhos sobre os túmulos.
- Amanhã eu ponho as flores mais bonitas que encontrar pessoal! – bradou em alta voz, ao mesmo tempo em que pensava no absurdo da situação. Definitivamente precisava de um médico de doidos, concluiu.
Chegou à casa tão exausto que mal pode terminar o banho. Adormeceu assim que sua cabeça tocou o travesseiro e sonhou. Em seu sonho escrevia um bilhete para o fantasma que agora habitava sua casa destruída e deixava sobre a mesa da cozinha. Mas ao voltar para pegar a resposta era recebido por seus filhos e esposa, com a alegria que lhes era comum. Acordou triste com o fim do que para ele era um desejo mais que um sonho, mas passada a primeira impressão, sentou-se e escreveu o tal bilhete com a brevidade que fazia parte de seu caráter. Dizia assim:
- Senhora Seja Lá Quem For, o que queres de mim?
Foi até sua casa e depositou o bilhete na mesinha da varanda. Não teve coragem de entrar porque achou que seria uma falta com a nova moradora, mas percebeu que havia um balanço na amoreira e arrepiou-se inteirinho. Foi para o barraco do cemitério satisfeito por não ter dado um esbarrão acidental naquela criatura do outro mundo.
Conforme prometera, encheu o cemitério de flores e aproveitou a tranquilidade de uma cidade sem mortos novos para capinar o pátio e lavar o chão das capelas. Sem perceber sua tristeza foi dando lugar a rotina pesada de trabalho e foi dormir mais preocupado com a resposta do fantasma que com a solidão da vida sem o amor dos seus pequenos. No dia seguinte, partiu para o antigo lar sem ao menos tomar o café. Encontrou no mesmo lugar de seu bilhete, um outro quase tão breve e sincero.
- Senhor Martinez, só peço que me permita passar um tempo no que foi sua casa um dia. Prometo fazer as melhorias que estiverem ao meu alcance como pagamento pela hospedagem. Gostou das tulipas?
Como havia levado papel e caneta, João Eurico respondeu:
- Fique o tempo que precisar, não tenho usado a casa. Só gostaria de continuar visitando o lugar de vez em quando para matar a saudade de meus entes queridos. Gostei sim, mas prefiro margaridas.
No dia seguinte a resposta o aguardava debaixo de um vasinho de margaridas:
- Sinta-se a vontade para vir quando quiser. O lugar é calmo e uma visita não me faria mal.
Os dias se passaram e a correspondência entre os dois tornou-se um hábito. Através dos bilhetes João descobriu que a alma se chamava Florípedes Garcia, que havia perdido o pai tragicamente, que agora vivia só, e que um dia tinha sido noiva, mas fora abandonada no altar. Trabalhara na roça desde criança e nunca frequentara a escola, mas aprendera a ler com a mãe antes que ela morresse vítima de uma picada de cobra na lida com a cana. À alma João contou da tragédia que se abatera sobre sua família, da infância rica quando seu pai ainda era vivo, do trabalho no cemitério e da solidão que o acompanhava mais por gosto do isolamento que por falta de oportunidade. Tinha uma irmã na cidade, mas só a visitava uma vez por mês. Tornaram-se assim os melhores amigos e João esqueceu-se de sua dor. Na véspera de Natal, o coveiro recebeu um bilhete diferente:
- Querido amigo, sinto dizer que terei de partir amanhã bem cedo. Obrigada por tudo o que fizestes por mim, jamais me esquecerei de tanta bondade. Infelizmente, o lugar para onde vou é muito longe daqui, apesar da dor que isso me causa, sou obrigada a constatar que essa despedida é um adeus.
João pegou o bilhete debaixo do vasinho de margaridas como de costume, e ao terminar de ler entrou em desespero. Não era justo perder de novo uma pessoa por que fosse tão apegado. “Que sina a minha!” – pensou. Pegou um papel amassado no bolso da calça e escreveu apressadamente:
- Florípedes, sei que o teu compromisso é importante e imagino que não seja possível escapares dele. Contudo, não posso me despedir de você por bilhetes. Preciso vê-la! Se não olhar para o que quer que sejas, jamais poderei suportar tua ausência. Sou um homem acostumado a perdas, mas todas elas olharam em meus olhos antes da despedida. Peço-te, me concedas um encontro. Amanhã pela manhã, estarei aqui para vê-la partir.
Para João Eurico uma noite nunca havia demorado tanto a passar. Não pode pregar o olho, sentia uma angústia mortal, como se não fosse sobreviver à dor de mais uma separação. Pensou que estava perdidamente apaixonado por uma criatura do outro mundo, e estava disposto a partir com ela para o além. Sem poder suportar a espera, levantou-se no meio da noite e atravessou o bosque, para esperar pelo amanhecer recostado à amoreira. Em frente a casa que agora pertencia ao seu amor fantasmagórico, João Eurico adormeceu.
Pela manhã, foi acordado por uma voz suave que o chamava:
- João? João, acorde!
De um salto o homem se colocou de pé, boquiaberto e estatelado. Florípedes caiu na gargalhada e perguntou:
- Que é isso homem? Parece que estás diante de uma assombração! Assim você me ofende.
- E não estou?
- Não está o quê?!
- Diante de uma assombração, oras?!
- Claro que não homem! Endoidou de vez foi?
- Mas você não é a mulher que fora envenenada pelo marido e voltou para resolver algum assunto pendente neste mundo?
- João, você está me assustando. Que assunto é esse?
- Espere. Quem é você?
- Como quem sou eu? Sou Florípedes.
- Sim, isso eu sei. Mas você não morreu?
- Ai, caramba! Não é que o povo tem razão e você é doido de pedra!
- Florípedes, me dê um instante para entender. Acho que fiz uma confusão enorme sugestionado pelo medo. Se você não é uma alma, porque não se apresentou há mais tempo? E porque mora nesses escombros?
- Não me apresentei porque você começou a fazer contato por bilhetes, e como conheço sua história, respeitei a distância que foi estabelecida. Agora, o motivo pelo qual estou escondida aqui é um pouco mais complicado. Perdi meu pai na mesma enchente que levou sua família. Tínhamos uma pequena quitanda em sociedade de um amigo, um homem impiedoso que roubava meu pai descaradamente. No mesmo dia que enterrei meu único parente, ele entrou em minha casa e me avisou que tudo o que eu acreditava pertencer a meu pai, na realidade era dele. Tenho certeza que é mentira, mas não sei como provar. Ainda acrescentou que me despejaria em uma semana, a não ser que eu aceitasse me casar com ele. O resto você pode imaginar. Conheci sua história através dos jornais e sabia que morava no cemitério. Nunca pensei que continuaria a visitar essa casa, pelas lembranças que lhe traria. Achei que aqui seria um excelente esconderijo. Há alguns dias tenho feito contato com asilos em outras cidades me oferecendo para cuidar dos idosos. Ontem recebi uma proposta para trabalhar com uma senhora em Poço das Almas e estou indo para lá. Sinto muito, mas não tenho escolha.
- Você pode me responder uma pergunta?
- Quantas você quiser.
- Você me ama?
- Amo.
- Então você tem uma escolha. Venha comigo!
E caminharam juntos, a alma penada e o maluco da cidade, para todo o sempre.

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