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terça-feira, 11 de outubro de 2011

Harmonia dos Prazeres






Quando Harmonia dos Prazeres chegou à casa de Dona Iolanda, ainda respondia pelo nome de Agostina Maria da Silva e tinha a cabeça infestada de piolhos. Vestia uma blusinha de alças com estampa de flores miudinhas tão apagada pelo uso que não contrastava mais com a saia listrada. Nos pés não usava nada, combinando com as mãos vazias. Perdera a mãe e o irmão mais novo para a fome e decidiu lutar contra o destino certo, pois possuía a teimosia dos sobreviventes. Completou dezoito anos dois dias após sua chegada à Cabeceira do Rio Seco, e bateu à porta do bordel para não ter que mendigar.


- Preciso de emprego, – falou para a senhora alta que a atendeu – senão vou morrer de fome. Não sei pedir, muito menos roubar. Tudo o que peço é um prato de comida, que para mim vale mais que ouro agora.


- Entre garota, não negocio nada com desesperados. – disse Iolanda, amarrando os cabelos – Coma alguma coisa e depois me diga se ainda quer trabalhar para mim. A vida aqui é dura e triste, não a recomendo para quem tem outras habilidades.


- Dona, conheço a dureza da vida. Nada mais triste que ficar sozinha nesse mundo com a morte esperando o momento certo para te levar. Acredite, se eu tivesse saída estaria lá.


- Qual seu nome menina?


- Harmonia. Harmonia dos Prazeres.


Dona Iolanda soltou uma gargalhada de estremecer seus braços gordos e compridos.


- Seu nome de batismo tolinha, não acha que vou acreditar que te deram um nome já pensando que seu fim seria a vida!


Agostina se apresentou, mas decidiu logo na primeira semana que usaria o nome inventado para não desrespeitar o que herdara da avó paterna. Escolheu um que fosse ao mesmo tempo, uma identificação e uma propaganda. Dona Iolanda achou engraçado e a apelidou de Tininha só para contrariar a mulata.


A chegada de Harmonia coincidiu com a festa da igreja, e como não era conhecida, conseguiu passar pelo crivo das beatas e montar uma barraquinha, um sonho antigo de dona Iolanda. Oferecia queijadinhas oficialmente, mas o prêmio secreto para quem comprasse o maior número de doces era a estreia da menina. Dona Iolanda garantiu que nenhum homem havia tocado a moça, e em pouco tempo não havia vestígio de queijadinha na barraca improvisada. O sucesso entre os homens da cidade foi tanto, que para identificar o ganhador, Harmonia precisou recorrer ao caderninho onde registrou as vendas.


O prefeito ficou em terceiro lugar. Sua esposa, sem saber do prêmio, pediu que ele desse algumas para os eleitores mais chegados. Se tivesse sido a quermesse do ano passado ele certamente ganharia, mas esse ano estava com a popularidade baixa e pouquíssimos amigos. Em segundo ficou seu Finório, da padaria Flor de Cabeceira. Comprou cento e cinquenta para vender durante a semana dizendo que eram fresquinhas. O vencedor foi Tácito Eurípedes, o funileiro, que pagou por duzentos e quinze queijadinhas e comeu só uma. As outras devolveu para serem vendidas novamente, recebendo das senhoras da igreja os mais altos elogios. Disseram que o pobre pagava uma promessa feita pela mãe quando ainda era um bebezinho. A verdade é que ele estava enfeitiçado pela beleza inolvidável da morena de ancas largas e seios púberes, que andava descalça pelas ruas cumprimentando a todos com um sorriso estreme.


A primeira vez que Tácito viu Harmonia, soube que seu destino estava traçado desde o nascimento e teve medo. Viu nos olhos da moça que nascia naquele instante para morrer por causa dela. Na noite da quermesse, quando soube que as queijadinhas eram o ingresso para os braços da amada, reuniu todas as suas economias e comprou o direito de estrear sua musa. Nutria a esperança de convencê-la a viver com ele e confiava na força de seu amor. Tinha para oferecer uma vida simples, é verdade, mas honesta. Nos dias que se seguiram, arrumou a casa e fabricou utensílios novos para a cozinha, comprou mais uma cadeira e algum tecido para forrar a cama. A ansiedade foi tanta que o rapaz começou a passar mal no dia anterior ao marcado para receber o prêmio, e caiu de cama, gravemente enfermo.


O caso é que demoraram em socorrê-lo, pois morava só em uma das casinhas da vila de dona Argentina, e por ser muito reservado, os vizinhos não estranharam sua ausência durante quase dois dias. Quando faltou à entrega do prêmio a que tinha direito é que souberam do acontecido, porque a cafetina foi ela própria à casa do fazedor de lampião se desobrigar do compromisso. Saiu de lá mais enlaçada do que jamais fora em toda a sua vida. Não pode negar ao moribundo o pedido que fez a ela de trocar uma noite com Harmonia pelos cuidados da moça durante sua enfermidade. Assim, dali a um quarto de hora, Harmonia descia a Rua da Alvorada para se meter nos corredores apertados da Vila Buenos Aires com a missão de servir de consolo a Tácito Eurípedes nos dias de convalescença. A moça não achou a função difícil, coisa pior era passar fome. De resto suportaria quase tudo. Cuidava da alimentação de Tácito, fazia sua higiene, limpava seus penicos, aplicava-lhe compressas... Tudo com uma graça que só fazia aumentar a admiração do rapaz por ela. O doente esteve a ponto de piorar só para estender aqueles dias de cumplicidade; mas Harmonia era uma santa, e fez o milagre de erguer o funileiro da cama em pouco mais de uma semana.


Quando avisou que não voltaria mais, Harmonia foi surpreendida com um homem aos seus pés, declarando todo o amor que sentira desde a primeira vez que seus olhos vislumbraram tamanha beleza e graciosidade. O assombramento da jovem pode ser percebido pelo corpinho arrepiado e trêmulo. Jamais na vida alguém antes havia dito que a amava, sequer demonstrado, e agora aquele rapaz a fazia perceber-se gente, merecedora de algum sentimento. Chorou. Tácito ergueu-se de pronto e, enquanto observava a lágrima descer lentamente pelo rosto de Harmonia, pegou a mãozinha da moça e colocou o anel que havia sido de sua mãe. Era uma joia fininha, sem pedras ou qualquer outro enfeite, mas para os dois equivalia ao caminho que trilharam ao encontro um do outro. Se perguntassem a Harmonia se mudaria alguma coisa em seu passado naquele instante ela responderia que nada, simplesmente porque tinha medo que algo a desviasse daquele momento mágico. Amou Tácito pelo amor que ele sentia por ela. Todas as tristezas de sua vida desapareceram e deram lugar à alegria de saber que, finalmente, pertencia a alguma história. Só que não é o passado que devemos temer, ele não pode nos surpreender. O que nos pega desprevenidos, o que não podemos evitar, é o que está por vir. O futuro é que esconde atrás de suas cortinas nebulosas o que nos eleva e o que nos abate. E o futuro de Harmonia e Tácito ignorava por completo os planos que os dois passariam a fazer dali para frente.
Naquele mesmo dia, a mulata e seus passos musicais desceram a rua de chão batido em direção ao bordel à beira do rio para pegar suas coisinhas e agradecer à Dona Iolanda e todas as meninas pelos dias que passara ali. Levava nas mãos um trocadinho, presente do noivo, para que se hospedassem em uma pensão na cidade até o dia do casamento. Dona Iolanda recebeu a notícia com estardalhaço e festejos. Abriu uma garrafa de sidra e distribuiu entre copos improvisados para brindar o fim de uma carreira que ela sabia não ser o dom da moça. Depois que as meninas ficaram satisfeitas com o relato do pedido feito à Harmonia, a dona da casa chamou a noiva a um canto e perguntou:
- Tininha, o rapaz sabe do que aconteceu nos dias que você passou aqui?
- Não senhora, Dona Iolanda. Não tive coragem de contar. Sei que ainda não conheceu mulher, e conto com isso para não ser descoberta. Não é justo que eu perca tanto amor porque meu homem chegou atrasado alguns dias. Se ao menos ele não tivesse adoecido...
- Não lamente querida, tudo vai dar certo. Se você fizer exatamente o que eu mandar ele não chegará a desconfiar, mesmo que seja experiente.
A confiança que Harmonia depositava naquela senhora de olhos infantis era tanta que deixou a preocupação de lado e voltou para as perguntas das colegas.
Dona Iolanda nunca faltou a um compromisso e agora não tinha sido diferente. Quando Tácito trocou a estreia da menina por seus cuidados de enfermeira, Iolanda procurou Finório e, como era justo, lhe concedeu o direito de inaugurar os serviços da morena no bordel. Acontece que a moça tinha o poder de enfeitiçar os homens, para sua sorte e desgraça, e seu Finório tornou-se um cliente assíduo e desesperado. Não se satisfez com a noite do prêmio, e voltou em todas as outras depois dela. Sempre que Harmonia voltava da casa do pobre funileiro encontrava o dono da padaria a esperar por ela.
Na noite do pedido de casamento, quando Dona Iolanda avisou ao comerciante de que teria qualquer menina como compensação pelo fim dos serviços de Harmonia, o homem quebrou todo o salão e foi ao hotel a procura da moça. Harmonia não o recebeu, em seu lugar mandou um dos empregados do hotel com uma arma à cintura para convencer Finório de que tudo estava acabado. Tinha medo que o escândalo chegasse aos ouvidos do noivo, decerto ele terminaria tudo se soubesse que estava sendo enganado. Deitada em sua cama, chorando e pedindo aos Céus que aquilo acabasse logo, Harmonia ouviu quando Finório foi arremessado à calçada e gritou:
- Isso não vai ficar assim, morena! Você é minha e de mais ninguém!
Harmonia ainda esperou que Finório voltasse para buscá-la, mas nada aconteceu. Dormiu sentada atrás da porta com medo de um arrombamento.
 Pela manhã, tomou um banho e partiu para a casa do noivo decidida a contar a verdade para não ficar exposta a ameaças. A rua tranquila tinha a cara da vida que queria levar dali para a frente, crianças já brincavam nas ruas e ela imaginou seus próprios filhos ralando joelhos naquelas calçadas. As gargalhadas das crianças deram a Harmonia a esperança de que seria aceita, afinal o amor de Tácito parecia forte demais para esmorecer diante de uma decepção. Por certo ele ficaria aborrecido, talvez pedisse um tempo para pensar. Harmonia esperaria pelo tempo que fosse necessário, o importante era lutar pelo homem da sua vida. Empurrou o portãozinho com o coração aos pulos, mas confiante. Achou estranho a porta estar aberta e por um segundo teve medo do que encontraria, mas a casa estava mergulhada em silêncio e paz. Dirigiu-se ao quintal já despreocupada e percebeu que havia alguém ali que não parecia seu noivo. Ao aproximar-se do homem sentado nas raízes do grande e velho carvalho, reconheceu Finório e estremeceu. Só depois viu o noivo deitado no chão, o corpo ensanguentado e imóvel. Sem forças para gritar, olhou para o homem como quem fizesse uma pergunta e ouviu a resposta que tanto temia:
- Eu avisei, morena. Agora volte para o trabalho e nunca mais me diga adeus.    




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