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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O cabotino







     Valdevino chegou à cidade de Esmeraldina com a roupa do corpo e muita conversa na mala. Seus quase dois metros e o corpo de guerreiro eram, com a cicatriz atravessada no rosto, as únicas provas de sua renomada valentia. Chegou se apresentando como caçador de criaturas bestiais, ganhando o respeito de todos na cidadezinha de casas empoleiradas, com moradores tão simples e supersticiosos que acreditariam num gato se ele dissesse que era o curupira. Dona Tertúlia, a viúva buliçosa proprietária da taberna, deu ao jovem casa e comida em troca de um marido novo. Era uma morena envelhecida pelas noites no balcão, mas com o mesmo ardor de quando era moça e ajudava o pai a servir o rum. Foi assim que o cabotino passou de forasteiro a proprietário de comércio em menos de seis meses, e enquanto sua mulher se desdobrava para atender aos clientes, o homem entretia a todos com suas histórias mirabolantes de bruxas empaladas por ele além das Terras das Rotas Diagonais, ou vampiros que receberam o duro golpe da estaca de prata depois de serem perseguidos sem trégua pelo único homem disposto a matá-los. Dizia que aquela cicatriz em seu rosto fora uma patada de lobisomem que recebera numa luta corpo a corpo e, que não sentissem pena dele, mas do bicho que havia sido estropiado sem a menor piedade.
          A taberna vivia cheia e Dona Tertúlia não reclamava da falta de ajuda, porque os homens bebiam mais quando estavam com medo por causa das histórias de Valdevino. O marido era muito carinhoso com ela, e sabia tratá-la de maneira que jamais viesse a reclamar da vida que tinha. Quando Tertúlia começava a sentir o peso das tarefas do dia, Valdevino encostava a cabecinha da mulher em seu peito axiomático, e afagava os cabelos dela com uma leveza imprópria a um homem acostumado a mosntros; se ela amanhecesse nostálgica, o homem astutamente recitava os poemas mais lindos ao pé de seu ouvido enquanto massageava sua nuca. Formavam um casal incomum, mas queriam o bem um do outro, e isso os mantinha unidos.
          As coisas caminharam bem durante alguns anos, até o dia que alguns animais começaram a aparecer mortos nas fazendas das redondezas e um grupo de homens da cidade resolveu eleger Valdevino como representante na caçada ao monstro que os atacava. 
- Há de ser lobisomem! – disse Amantino Lopes Castro.

- Claro que não! – discordou Cesário Mota Rodriguez – É vampiro, com certeza!

E os homens amedrontados começaram a discutir, sem perceber que Valdevino estava muito mais apavorado que todos juntos. Só Tertúlia desconfiou que algo não se encaixava quando viu os olhos do marido cada vez mais esbugalhados e escutou seu vozeirão afinar até sumir.

- Já sei o que fazer! – gritou o cabotino – Nenhuma caçada é bem sucedida sem um bom planejamento. Vamos nos reunir amanhã para pensar na melhor maneira de atacar essa criatura maléfica.

- Amanhã? Quanto antes melhor! Vamos planejar o ataque agora já que estamos todos aqui. – disse um velho magrinho, que parecia ser o conselheiro local.

- Isso mesmo! – concordaram todos.

- Cla- claro! – tartamudeou Valdevino. – Mas que cabeça a minha!

E os homens formaram um plano tão bem articulado quanto perigoso, já que não sabiam do que se tratava o animal misterioso. Combinaram que, no dia seguinte, todos sairiam à procura da tal besta que se atrevera a incomodá-los. Enquanto pensavam em como capturar o bicho, Valdevino repassava na cabeça o plano de fuga que armou no mesmo instante que soube da furada na qual se enfiara. E Tertúlia lia em suas expressões cada um dos passos que pretendia dar para longe dali. Depois que o último cliente saiu da taberna, a mulher perguntou ao marido:

- Que é que está acontecendo homem? Vi na tua cara o medo estampado! Conheço os homens e sei muito bem quando estão dispostos a fazer uma coisa. Você não tem a menor pretensão de caçar essa fera tem?!

- Não é bem isso. É que estou destreinado e inerme. Abandonei a vida de bárbaro e me acostumei à paz de um lar feliz.

- Pois trate de se desabituar da vida boa que tenho te dado e lute como homem para defender a cidade que te acolheu com carinho. Tenho suportado o trabalho duro sozinha e tua incapacidade de ser útil só é um orgulho para mim porque tenho um marido corajoso. Não vou aceitar que riam de mim pelas ruas ao descobrirem que não passas de um farsante. Saibas que esta noite não dormirei para que não fujas como um rato. E amanhã irá para a mata caçar esse tormento que apareceu por aqui.

Valdevino entrou num desespero maior ainda ao perceber que fugir seria impossível. Tentou convencer a mulher a deixá-lo ir, mas ela estava irredutível. Não houve jeito de escapar ao compromisso da caçada e foi tremendo e rezando o que lembrava encontrar com o primeiro bicho que perseguiria na vida. Os homens passaram a noite esquadrinhando os terrenos e seguindo pistas, e quanto mais descobriam, mais Valdevino se apavorava. Quando faltava uma hora para o amanhecer, seu Agnelo e o filho gritaram por ajuda, pois tinham encurralado o monstro. Os homens cercaram o lugar de onde vinham os rugidos e quando o bicho pulou na direção de todos, abriram fogo enquanto Valdevino desmaiava. Quando clareou e eles puderam distinguir do que se tratava a fera, perceberam que era um leão velho com uma coleira do circo da cidade vizinha. Voltaram para casa aliviados, carregando Valdevino nos ombros ainda assustado com o incidente.  Depois do acontecido, os homens perderam o costume de ouvir as histórias do cabotino na taberna; agora ele passava o tempo trabalhando no balcão, enquanto Dona Tertúlia reunia os amigos em volta das mesas para uma partidinha de carteado, que ninguém é de ferro.


    





     







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