Valdevino chegou à cidade de Esmeraldina
com a roupa do corpo e muita conversa na mala. Seus quase dois metros e o corpo
de guerreiro eram, com a cicatriz atravessada no rosto, as únicas provas de sua
renomada valentia. Chegou se apresentando como caçador de criaturas bestiais,
ganhando o respeito de todos na cidadezinha de casas empoleiradas, com
moradores tão simples e supersticiosos que acreditariam num gato se ele
dissesse que era o curupira. Dona Tertúlia, a viúva buliçosa proprietária da
taberna, deu ao jovem casa e comida em troca de um marido novo. Era uma morena
envelhecida pelas noites no balcão, mas com o mesmo ardor de quando era moça e
ajudava o pai a servir o rum. Foi assim que o cabotino passou de forasteiro a
proprietário de comércio em menos de seis meses, e enquanto sua mulher se
desdobrava para atender aos clientes, o homem entretia a todos com suas
histórias mirabolantes de bruxas empaladas por ele além das Terras das Rotas Diagonais,
ou vampiros que receberam o duro golpe da estaca de prata depois de serem
perseguidos sem trégua pelo único homem disposto a matá-los. Dizia que aquela
cicatriz em seu rosto fora uma patada de lobisomem que recebera numa luta corpo
a corpo e, que não sentissem pena dele, mas do bicho que havia sido estropiado
sem a menor piedade.
A taberna vivia cheia e Dona Tertúlia não reclamava da falta de ajuda, porque
os homens bebiam mais quando estavam com medo por causa das histórias de
Valdevino. O marido era muito carinhoso com ela, e sabia tratá-la de maneira
que jamais viesse a reclamar da vida que tinha. Quando Tertúlia começava a
sentir o peso das tarefas do dia, Valdevino encostava a cabecinha da mulher em
seu peito axiomático, e afagava os cabelos dela com uma leveza imprópria a um
homem acostumado a mosntros; se ela amanhecesse nostálgica, o homem astutamente
recitava os poemas mais lindos ao pé de seu ouvido enquanto massageava sua
nuca. Formavam um casal incomum, mas queriam o bem um do outro, e isso os
mantinha unidos.
As coisas caminharam bem durante alguns anos, até o dia que alguns animais
começaram a aparecer mortos nas fazendas das redondezas e um grupo de homens da
cidade resolveu eleger Valdevino como representante na caçada ao monstro que os
atacava.
- Há de ser
lobisomem! – disse Amantino Lopes Castro.
- Claro que não! – discordou Cesário Mota
Rodriguez – É vampiro, com certeza!
E os homens amedrontados começaram a
discutir, sem perceber que Valdevino estava muito mais apavorado que todos
juntos. Só Tertúlia desconfiou que algo não se encaixava quando viu os olhos do
marido cada vez mais esbugalhados e escutou seu vozeirão afinar até sumir.
- Já sei o que fazer! – gritou o cabotino
– Nenhuma caçada é bem sucedida sem um bom planejamento. Vamos nos reunir
amanhã para pensar na melhor maneira de atacar essa criatura maléfica.
- Amanhã? Quanto antes melhor! Vamos
planejar o ataque agora já que estamos todos aqui. – disse um velho magrinho,
que parecia ser o conselheiro local.
- Isso mesmo! – concordaram todos.
- Cla- claro! – tartamudeou Valdevino. –
Mas que cabeça a minha!
E os homens formaram um plano tão bem
articulado quanto perigoso, já que não sabiam do que se tratava o animal
misterioso. Combinaram que, no dia seguinte, todos sairiam à procura da tal
besta que se atrevera a incomodá-los. Enquanto pensavam em como capturar o
bicho, Valdevino repassava na cabeça o plano de fuga que armou no mesmo
instante que soube da furada na qual se enfiara. E Tertúlia lia em suas
expressões cada um dos passos que pretendia dar para longe dali. Depois que o
último cliente saiu da taberna, a mulher perguntou ao marido:
- Que é que está acontecendo homem? Vi na
tua cara o medo estampado! Conheço os homens e sei muito bem quando estão
dispostos a fazer uma coisa. Você não tem a menor pretensão de caçar essa fera
tem?!
- Não é bem isso. É que estou destreinado
e inerme. Abandonei a vida de bárbaro e me acostumei à paz de um lar feliz.
- Pois trate de se desabituar da vida boa
que tenho te dado e lute como homem para defender a cidade que te acolheu com
carinho. Tenho suportado o trabalho duro sozinha e tua incapacidade de ser útil
só é um orgulho para mim porque tenho um marido corajoso. Não vou aceitar que
riam de mim pelas ruas ao descobrirem que não passas de um farsante. Saibas que
esta noite não dormirei para que não fujas como um rato. E amanhã irá para a
mata caçar esse tormento que apareceu por aqui.
Valdevino entrou num desespero maior ainda
ao perceber que fugir seria impossível. Tentou convencer a mulher a deixá-lo
ir, mas ela estava irredutível. Não houve jeito de escapar ao compromisso da
caçada e foi tremendo e rezando o que lembrava encontrar com o primeiro bicho
que perseguiria na vida. Os homens passaram a noite esquadrinhando os terrenos
e seguindo pistas, e quanto mais descobriam, mais Valdevino se apavorava.
Quando faltava uma hora para o amanhecer, seu Agnelo e o filho gritaram por
ajuda, pois tinham encurralado o monstro. Os homens cercaram o lugar de onde
vinham os rugidos e quando o bicho pulou na direção de todos, abriram fogo
enquanto Valdevino desmaiava. Quando clareou e eles puderam distinguir do que
se tratava a fera, perceberam que era um leão velho com uma coleira do circo da
cidade vizinha. Voltaram para casa aliviados, carregando Valdevino nos ombros
ainda assustado com o incidente. Depois do acontecido, os homens perderam
o costume de ouvir as histórias do cabotino na taberna; agora ele passava o
tempo trabalhando no balcão, enquanto Dona Tertúlia reunia os amigos em volta
das mesas para uma partidinha de carteado, que ninguém é de ferro.
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