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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Breve história de um amor alegre.







Charlote e Alexander se conheceram no aeroporto de Toronto; ela: gaia, ele: tonto. Ainda se amam e ponto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Talismã do Tapeceiro






Há muitos anos, quando Poço das Almas ainda era uma pequena aldeia, vivia por lá um tapeceiro de nome Álvaro, que trabalhava diligentemente na esperança de juntar o dinheiro necessário para o dote de sua amada. Era do conhecimento de todos os habitantes do lugar que Álvaro e Piedade haviam se apaixonado ainda na infância, e que só a pobreza do rapaz os impedia de começar uma vida juntos. O pai de Piedade não era rico, mas não admitiria que a filha tivesse, ao casar, uma vida mais dura que a que ele podia dar.

O desejo de merecer Piedade fez com que o tapeceiro vivesse somente com o que fosse necessário para sua sobrevivência, mas todo o seu esforço era inútil, pois nunca chegava à quantia que bastasse para o pai de Piedade. Na verdade, seu Hamilton queria casar a filha com um homem rico, e sabia que conseguiria se insistisse.

Alertado pelos amigos de que perderia Piedade para o filho de um grande fazendeiro das redondezas, Álvaro reuniu seus mais belos tapetes e partiu para uma viagem pelas cidades próximas, numa tentativa desesperada de vendê-los e obter o suficiente para casar-se com o amor de sua vida. Alugou uma carroça com o ferreiro prometendo pagar-lhe ao voltar, e partiu de madrugada deixando um bilhete para Piedade preso à janela do quarto da moça.

Visitou aldeias, cidades, vilas, e todas as casinhas que encontrou pelo caminho, mas pouco vendeu. As coisas estavam difíceis aquele ano, e as pessoas não podiam gastar em nada que não fosse comida. O que Álvaro conseguiu mal dava para pagar o aluguel da carroça e comprar mantimentos para ele e o jumentinho que o acompanhava naquela dura empreitada. Desanimado, resolveu voltar para casa porque sabia que gastaria menos do que se persistisse naquele despropósito; pegou o atalho pela Floresta Descomunal, atravessando o Lago das Intempéries em seu ponto mais perigoso. O tapeceiro sempre fora daqueles homens que não se assustam com nada, real ou inventado, que atravesse seu caminho, mas quando saiu do lago e percebeu que estava perdido, desesperou-se. A única ameaça que infundia gelo em seus ossos era a de ficar sem Piedade, no mais era apegar-se em Deus e enfrentar com honra. Mas se demorasse demais para encontrar o caminho de volta para casa, certamente perderia a amada, e isso não poderia permitir.

Enquanto pensava no que fazer diante de uma emergência tão grave como aquela, escutou gemidos sufocados que pareciam vir de um lugar não muito distante de onde estava. Partiu na direção dos sons agonizantes e, depois de alguns minutos, deu com uma senhora presa até a cintura numa cova cheia de lama, aberta para capturar animais de caça, muito comum por aquelas bandas.

- Por favor, meu filho, tire-me depressa daqui! – implorou a senhora.

- Espere um minuto, senhora, - respondeu o rapaz – pensarei em alguma coisa.

- Seu jumento! – disse ela – Amarre uma corda nele e jogue a outra ponta para mim. E enquanto ela falava, a lama foi cedendo mais rápido e ela quase desapareceu.

Num impulso de salvar a velha, Álvaro desaparelhou o jumento, amarrou uma corda em seu pescoço e atirou a outra ponta em direção ao poço de lama. O peso da senhora somado à força da sopa de terra que a segurava, foram demais para o jumentinho e ele também foi parar no poço. Mas antes que ele submergisse por completo, a senhora ganhou energia e conseguiu escalar o bicho até a borda do poço, onde foi puxada por Álvaro. O rapaz ainda tentou salvar o animal, mas foi em vão.

Depois que conseguiram se restabelecer, a mulher olhou para Álvaro e disse:

- Sinto muito pelo animal, meu filho. Chamo-me Bibiana e moro há anos nesta floresta perdida. Há anos não tenho contato com ninguém e já desistia de lutar quando você apareceu. Sei que é minha responsabilidade o que aconteceu a seu jumento, portanto quero te recompensar com um presente muito valioso.

- Não é necessário, fiz o que deveria ter feito. Jamais me perdoaria se deixasse de socorrer alguém em apuros.

- Faço questão. Além do mais, vejo em seu coração que você precisa muito do que tenho a oferecer. Venha comigo.

E Álvaro não soube dizer não ao chamado. Caminhou por entre a densa mata puxando a carroça com os tapetes, mesmo depois que Bibiana o garantiu que seus produtos não seriam mais necessários. Andaram em silêncio até que dessem em uma clareira e uma casinha simples no meio dela, cercada de plantações de temperos, ervas e toda sorte de plantas tropicais usadas pelos índios para os mais variados fins. A casinha, apesar de nitidamente pertencer à outra época, não parecia ter sido vítima do óxido do tempo; suas paredes de pedra brilhavam em resposta aos raios de sol que se esgueiravam pelas folhagens alcançando alguns pontos do lugar; era toda ladeada por uma varanda ampla que desembocava numa escadaria esculpida de acordo com os acidentes do terreno até o meio do pátio, e o telhado era estranhamente parecido com um copo-de-leite emborcado. Álvaro podia jurar que a porta se abriu antes do toque daquela senhora misteriosa, mas antes que pudesse analisar a cena, escutou o convite:

- Entre e se acomode, vou à cozinha preparar um chá.

- Não precisa... – e Bibiana desapareceu subitamente.

Antes que Álvaro pudesse contar todos os livros de receitas estranhas que havia espalhados pela casa, Bibiana voltou carregando uma bandeja com os chás e um medalhão de prata.

- Isto é um talismã, um medalhão da sorte. – disse enquanto estendia o objeto na direção do rapaz – Enquanto mantiver esse cordão pendurado ao pescoço, poderá desejar quase tudo que se tornará realidade.

- Quase?! – perguntou Álvaro, curioso.

- Sim. Há três coisas que o medalhão não realiza para seu dono: ele não pode lhe dar a eternidade, não pode fazer com que pessoas o amem e não pode trazer de volta seus entes queridos que já se foram. Não sendo uma dessas coisas, tudo o mais será seu se quiseres. Mas existe outra coisa que você precisa saber. Nenhum dos seus desejos poderá ser desfeito, pense bem no que vais querer daqui para frente porque será definitivo. – E dizendo isso, colocou o cordão no homem. Álvaro riu, mas agradeceu. E disse tranqüilo:

- A única coisa que desejo agora é achar o caminho para casa.

- Então vá.

Quando o rapaz passou pela porta da casa de Bibiana, ao invés da mata garrida e imponente, estava na trilha que levava a sua aldeia, provavelmente a um dia de caminhada. Precisou de algum tempo para assimilar o acontecido e concluiu:

- A velha falava a verdade!

Imediatamente, levado pelo desejo de chegar o mais rápido possível a casa de sua amada, e em condições de pedi-la em casamento, desejou riquezas, boas roupas e uma comitiva. Tudo apareceu antes de duas piscadelas, e Álvaro se divertiu tanto com a novidade que resolveu encontrar um lugar para estabelecer um castelo, mobiliá-lo, colocar nele animais e empregados, um fosso, alguns guardas, e tudo o mais que pode imaginar. Levou alguns meses assim, a um dia de casa, mas ocupado demais com a arrogância recém adquirida para voltar sem toda a pompa que acreditava merecer agora. Antes de entrar na aldeia, se fez anunciar por empregados durante três dias seguidos, levando presentes aos moradores e tocando trombetas pelas ruas. Quando finalmente resolveu aparecer, descobriu que Piedade havia se casado há alguns meses, que o casamento havia sido o dia mais infeliz de sua vida, e que a tristeza carregou-a para o leito de enferma durante semanas, delirando que seu amado estava vindo para buscá-la. Há exatamente um mês ela não resistiu e morreu. Álvaro soube que esse foi o tempo que passou enlouquecido com as novidades da riqueza e prostrou-se. Levou algum tempo desatinado até que se lembrou de Bibiana e resolveu ir a sua procura pensando que se a matasse, talvez pudesse reverter a situação. Chegou à casinha triste na clareira no meio da mata e encontrou um rapazote tocando uma flauta nos degraus de pedra.

- Rapaz, onde está a bruxa que mora aqui? – perguntou com sangue nos olhos.

- Ela não mora mais aqui não senhor, foi embora hoje cedo e disse que eu poderia ficar aqui.

- Você sabe para onde ela foi?

- Sei não senhor.

- Obrigado, rapaz. Tome cuidado com essa casa que ela é amaldiçoada.

- Senhor!

- Pois não.

- Desculpe a minha ousadia, mas é muito bonito o medalhão que o senhor carrega.

- Pode ficar com ele, mas ainda é pior que a casa. – disse, enquanto atirava o medalhão para o rapaz.

Álvaro partiu para dentro da mata, certo de que alcançaria a bruxa. Assim que ele desapareceu pelas folhagens, o rapazinho se transfigurou em Bibiana e sorrindo disse:

- São engraçados, os homens. Não escutam as advertências que fazemos e transformam o mal em bem. Não satisfeitos, ainda procuram quem os ajuda para agradecer com a morte. Esse nunca mais vai sair desta mata. Está condenado. E o medalhão fica comigo para que eu escolha alguém que realmente o mereça.


  










quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O cabotino







     Valdevino chegou à cidade de Esmeraldina com a roupa do corpo e muita conversa na mala. Seus quase dois metros e o corpo de guerreiro eram, com a cicatriz atravessada no rosto, as únicas provas de sua renomada valentia. Chegou se apresentando como caçador de criaturas bestiais, ganhando o respeito de todos na cidadezinha de casas empoleiradas, com moradores tão simples e supersticiosos que acreditariam num gato se ele dissesse que era o curupira. Dona Tertúlia, a viúva buliçosa proprietária da taberna, deu ao jovem casa e comida em troca de um marido novo. Era uma morena envelhecida pelas noites no balcão, mas com o mesmo ardor de quando era moça e ajudava o pai a servir o rum. Foi assim que o cabotino passou de forasteiro a proprietário de comércio em menos de seis meses, e enquanto sua mulher se desdobrava para atender aos clientes, o homem entretia a todos com suas histórias mirabolantes de bruxas empaladas por ele além das Terras das Rotas Diagonais, ou vampiros que receberam o duro golpe da estaca de prata depois de serem perseguidos sem trégua pelo único homem disposto a matá-los. Dizia que aquela cicatriz em seu rosto fora uma patada de lobisomem que recebera numa luta corpo a corpo e, que não sentissem pena dele, mas do bicho que havia sido estropiado sem a menor piedade.
          A taberna vivia cheia e Dona Tertúlia não reclamava da falta de ajuda, porque os homens bebiam mais quando estavam com medo por causa das histórias de Valdevino. O marido era muito carinhoso com ela, e sabia tratá-la de maneira que jamais viesse a reclamar da vida que tinha. Quando Tertúlia começava a sentir o peso das tarefas do dia, Valdevino encostava a cabecinha da mulher em seu peito axiomático, e afagava os cabelos dela com uma leveza imprópria a um homem acostumado a mosntros; se ela amanhecesse nostálgica, o homem astutamente recitava os poemas mais lindos ao pé de seu ouvido enquanto massageava sua nuca. Formavam um casal incomum, mas queriam o bem um do outro, e isso os mantinha unidos.
          As coisas caminharam bem durante alguns anos, até o dia que alguns animais começaram a aparecer mortos nas fazendas das redondezas e um grupo de homens da cidade resolveu eleger Valdevino como representante na caçada ao monstro que os atacava. 
- Há de ser lobisomem! – disse Amantino Lopes Castro.

- Claro que não! – discordou Cesário Mota Rodriguez – É vampiro, com certeza!

E os homens amedrontados começaram a discutir, sem perceber que Valdevino estava muito mais apavorado que todos juntos. Só Tertúlia desconfiou que algo não se encaixava quando viu os olhos do marido cada vez mais esbugalhados e escutou seu vozeirão afinar até sumir.

- Já sei o que fazer! – gritou o cabotino – Nenhuma caçada é bem sucedida sem um bom planejamento. Vamos nos reunir amanhã para pensar na melhor maneira de atacar essa criatura maléfica.

- Amanhã? Quanto antes melhor! Vamos planejar o ataque agora já que estamos todos aqui. – disse um velho magrinho, que parecia ser o conselheiro local.

- Isso mesmo! – concordaram todos.

- Cla- claro! – tartamudeou Valdevino. – Mas que cabeça a minha!

E os homens formaram um plano tão bem articulado quanto perigoso, já que não sabiam do que se tratava o animal misterioso. Combinaram que, no dia seguinte, todos sairiam à procura da tal besta que se atrevera a incomodá-los. Enquanto pensavam em como capturar o bicho, Valdevino repassava na cabeça o plano de fuga que armou no mesmo instante que soube da furada na qual se enfiara. E Tertúlia lia em suas expressões cada um dos passos que pretendia dar para longe dali. Depois que o último cliente saiu da taberna, a mulher perguntou ao marido:

- Que é que está acontecendo homem? Vi na tua cara o medo estampado! Conheço os homens e sei muito bem quando estão dispostos a fazer uma coisa. Você não tem a menor pretensão de caçar essa fera tem?!

- Não é bem isso. É que estou destreinado e inerme. Abandonei a vida de bárbaro e me acostumei à paz de um lar feliz.

- Pois trate de se desabituar da vida boa que tenho te dado e lute como homem para defender a cidade que te acolheu com carinho. Tenho suportado o trabalho duro sozinha e tua incapacidade de ser útil só é um orgulho para mim porque tenho um marido corajoso. Não vou aceitar que riam de mim pelas ruas ao descobrirem que não passas de um farsante. Saibas que esta noite não dormirei para que não fujas como um rato. E amanhã irá para a mata caçar esse tormento que apareceu por aqui.

Valdevino entrou num desespero maior ainda ao perceber que fugir seria impossível. Tentou convencer a mulher a deixá-lo ir, mas ela estava irredutível. Não houve jeito de escapar ao compromisso da caçada e foi tremendo e rezando o que lembrava encontrar com o primeiro bicho que perseguiria na vida. Os homens passaram a noite esquadrinhando os terrenos e seguindo pistas, e quanto mais descobriam, mais Valdevino se apavorava. Quando faltava uma hora para o amanhecer, seu Agnelo e o filho gritaram por ajuda, pois tinham encurralado o monstro. Os homens cercaram o lugar de onde vinham os rugidos e quando o bicho pulou na direção de todos, abriram fogo enquanto Valdevino desmaiava. Quando clareou e eles puderam distinguir do que se tratava a fera, perceberam que era um leão velho com uma coleira do circo da cidade vizinha. Voltaram para casa aliviados, carregando Valdevino nos ombros ainda assustado com o incidente.  Depois do acontecido, os homens perderam o costume de ouvir as histórias do cabotino na taberna; agora ele passava o tempo trabalhando no balcão, enquanto Dona Tertúlia reunia os amigos em volta das mesas para uma partidinha de carteado, que ninguém é de ferro.


    





     







quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O consumista de afetos!







Santiago entrou na cafeteria A Baronesa de olhos atentos como quem procura a pessoa com quem marcou um encontro. Toda quinta-feira era a mesma coisa, escolhia uma mesa no fundo do salão e observava com seus olhinhos oblíquos, por cima dos pequeninos óculos escuros, o movimento das moças que frequentavam o lugar. Tinha a capacidade de se fazer notar apenas quando era de sua conveniência; habilidade muito útil aos seus planos nada honestos. Quando encontrava a vítima perfeita, passava um pente sobre os cabelos engomados, empurrava os oclinhos com o dedo indicador para perto dos olhos, ajeitava a gravata, e partia para o ataque. Convidava-se para sentar com uma desculpa qualquer e discorria sobre algum assunto do universo feminino, geralmente um romance que estivesse na moda, ou o próximo baile dos Gonçalves de Campos Matos. Depois de iniciado o caminho para a cumplicidade, oferecia-se para pagar a conta e, se não fosse atrevimento, acompanhar a senhorita até seu próximo compromisso. Funcionava na maioria das vezes; depois de alguns dias de corte, todas acabavam no hotel da cidade, um lugar discreto e de serviço decente.
Santiago não era desses conquistadores que se aproveitavam das moças para tirar-lhes o dinheiro. Não! Isso ele tinha de sobra! Seu objetivo era tão somente colher daquelas flores em botão seus primeiros carinhos, e os beijos e amores ainda não maculados pelo toque de outro homem. Gostava de inaugurá-las e acreditava que lhes prestava um excelente serviço, garantia-lhes que a primeira vez fosse com um grande entendedor do assunto e com uma classe comparada somente aos de dígitos bem maiores que o dele. O rapaz não gostava das profissionais porque seu objetivo principal não era satisfazer-se fisicamente, na verdade se alimentava do afeto recebido, sentia-se importante e desejado quando era alvo do mais puro sentimento: o primeiro amor. E vivendo um romance por semana livrava-se do estorvo que é um compromisso.
Nessa quinta-feira, porém, conheceu Veneranda e apaixonou-se assim que trocaram olhares. Tinha a moça uma pele emprestada de pêssegos, os cabelos ruivos levemente ondulados caíam-lhe pelas costas, soltos, até os quadris; os olhos eram tão grandes e azuis, que pareciam dois mundos paralelos, postos assim para fazer com que se tenha dúvidas sobre em qual deles se quer viver; e a boca era um convite ao amor. Santiago esqueceu-se de respirar por alguns segundos quando a viu levantar-se e dirigir-se a ele.
- Posso me sentar? – perguntou a menina.
- Claro – respondeu Santiago, pigarreando e esticando o peito.
- Não pude deixar de notar que estava olhando com certa simpatia para mim. Chamo-me Veneranda. E o senhor?
- Santiago. Desculpe-me se dei essa impressão, mas olhava para a rua com certeza, e não para a senhorita.
- Não negue. Sentir-me-ia ofendida.
- Bem, sendo assim, sou obrigado a confessar que me chamastes a atenção. Se me permite dizer, tua beleza...
- Eu sei, minha beleza é também minha maldição. O que é a beleza senão a impressão de que vemos o perfeito quando ele não existe? A beleza é um embuste, meu caro! Ela dura apenas o tempo necessário para te acostumares com ela. Alguns dias comigo e me terás como uma mulher comum.
- Não sei por que, estou começando a duvidar disso.
Veneranda sorriu e abaixou os olhos. Aquele gesto realmente o surpreendeu, não combinava com a mulher decidida e desenvolta que se apresentara a ele. Conversaram por mais algumas horas e Santiago jurava que haviam passado apenas alguns minutos. Ao fim desse tempo, Veneranda levantou-se e perguntou:
- Vamos andar um pouco?
Santiago concordou e saíram da cafeteria sem rumo certo. O mistério que envolvia Veneranda fazia com que ele ficasse ainda mais interessado nela. Conversaram durante toda a tarde, e ele começou a temer que aquele dia chegasse ao fim. Deixava que a moça falasse, na esperança de que se esquecesse da hora de partir. As cinco em ponto, Veneranda dirigiu-se à Santiago e propôs com a naturalidade de quem fala algo trivial:
- Por que não vamos a um hotel?
A proposta deixou Santiago um pouco confuso, mas não era homem de recusar um convite como esse.
- Claro que sim, só não acho que ficaria bem para a senhorita...
- Não se prenda a convenções agora. Por que economizar a vida? Vamos que não tenho tempo para charminhos bobos.
Aquela moça só poderia ter saído de algum sonho do qual Santiago não se lembrava. Cada palavra que saía de sua pequena boca carnuda parecia posta ali por ele próprio. Foi curioso que atendeu ao convite, mas havia uma carta insegurança em suas ações. Afinal de contas, quem seria essa desconhecida?!  Em pouco mais de meia hora de caminhada, chegaram ao hotel onde Santiago mantinha um quarto alugado. A fachada francesa e a rua vazia davam uma impressão ainda mais estranha aquele encontro, como se a qualquer momento algo surpreendente fosse acontecer. O clima de improbabilidade e mistério só fez aumentar o desejo de Santiago por conhecer melhor aquela ruiva irresponsável que fez com que ele sentisse, pela primeira vez, a pontada do amor no coração. Enquanto a moça subia as escadas segurando os sapatos e deixando à mostra os pezinhos delicados, ligados às pernas pelos tornozelos mais lindos que Santiago já havia visto, o rapaz pensava na sorte grande que o alcançara aquele dia e na sincera vontade de perpetuá-lo indefinidamente. Tinha certeza de que encontrara a mulher ideal para dividir seus planos de um futuro promissor e audacioso. Veneranda seria seu cartão de visitas para a sociedade que não o aceitava com simpatia, não por ser um novo rico, mas porque sua herança provinha de uma união condenada por todos entre sua mãe e um conhecido juiz para quem ela trabalhava.  A beleza européia daquela moça misteriosa calaria os mais ferozes críticos defensores da moral vigente. Estava decidido.
Veneranda e Santiago passaram a noite em descobertas mútuas. Realizaram todas as brincadeiras possíveis, conhecidas e inventadas, juraram amor eterno e fizeram planos para o futuro glorioso que teriam juntos. Quando o dia já amanhecia, Santiago fez o pedido de casamento que foi aceito imediatamente.
Ao deixar, porém, o hotel, homens vestidos de branco seguraram os braços da menina ainda na calçada e a empurraram para a ambulância estacionada em frente, dando-lhe injeções para que ela parasse de gritar. Santiago, em desespero, tentou livrá-la de seus sequestradores, mas foi inútil. Foi imobilizado tal qual Veneranda, mas acalmou-se antes de ser sedado e pediu explicações. Os enfermeiros informaram ao moço que ele correra grave perigo aquela noite, pois Veneranda era louca de hospício e, sempre que conseguia fugir, fazia vítimas entre os homens que atraía para o amor. Aquela revelação foi para Santiago um golpe duro demais e o rapaz caiu sentado na calçada com a mão ao peito, mas antes de desmaiar pelo medicamento recebido, Veneranda olhou para o amante relâmpago e revelou:
- Não pude te dar o mesmo fim, pois a semelhança entre nós me fez ser sincera desta vez. Acredite-me, fostes meu primeiro amor.





As coisas que fizemos para nos desmerecer...








  Ela o amava mais que todos que teve. Mais que todos juntos. Como se estivesse perdendo a visão e ele fosse o por-do-sol. Desde o início sabia que haveria um fim, e o fato de desconhecer o quando, o onde ou como, deixava-a numa agonia constante, um eterno suspense. Nem conseguia viver cada instante com intensidade, por não saber lidar com a pressão da iminência do fim; também não conseguia mandar tudo para o espaço e acabar logo com o tormento. Foi justamente esse comportamento que abreviou a crise e provocou a ruptura anunciada. Seu desespero foi o veneno da relação, o fósforo riscado na trilha de pólvora. E tudo foi pelos ares.


Vamos voltar alguns anos para entender como tudo aconteceu. Conheceram-se em uma festa, os dois a trabalho. Ela era secretária e ele assessor de influentes empresários do mesmo ramo; assuntos em comum os aproximaram. É verdade que ele recebeu um incentivo a mais do chefe, que achou conveniente ter um contato no concorrente. Prometeu até uma promoção, caso conseguisse informações interessantes. Para ela foi a realização de um sonho, estava apaixonada e tinha certeza que dessa vez encontrara o cara certo.


No início tudo foi perfeito, exatamente como o torpor e a imbecilidade dos apaixonados permitem acontecer. Ele não tinha defeitos para ela. Passaram a morar juntos em apenas três meses. Com o tempo, porém, tornaram-se os piores pesadelos um do outro. Inimigos mortais dividindo a mesma cama. Ele a traía descaradamente, e ela se entupia de remédios, tornando-se cada vez mais distante da pessoa que havia sido até ali. Chegou ao limite de tudo o que é aceitável que uma pessoa faça para se manter merecedora do respeito alheio e, ao transpor esse limite, o fez com a sensação de não poder mais trilhar o caminho de volta. Cobrou dele as promessas feitas na cumplicidade da madrugada, como quem cobra aos pais uma história antes de dormir. E sua ingenuidade era a desculpa que usava para justificar a maneira como enxergava a vida. Exigia dele que fosse perfeito, que fosse exatamente com imaginava que deveria ser. “As pessoas não são como sonhamos, querida!” Mas quem disse que ela dava ouvidos?! Meteu na cabeça que o ator daquele filme se comportava da forma como ele deveria, como todos os homens deveriam ser. Queria fazer do vilão um mocinho a qualquer custo. Não conseguiu. Sua insistência trouxe o desentendimento, e em pouco tempo não se reconheciam mais. Ou será que nunca tinham se conhecido?


No domingo à tarde, depois que ele disse que havia se apaixonado por outra pessoa, mais leve, mais real, mais equilibrada, mais jovem... depois que ela gritou, ameaçou, e fez uma cena que havia visto há muito tempo, ele pegou as malas e bateu a porta. Ela foi até o quarto, pegou o espelho, colocou à sua frente e deslizou, chorando na parede oposta, para ver se estava fazendo a cena direitinho.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Poema de minha descoberta recente









Agora sei
que não nos pertenceremos jamais.
Que sua boca nunca será minha,
que minha cabeça
nunca descansará sobre teu peito
que suas mãos não me consolarão,
que meus cabelos nunca
deslizarão entre seus dedos.
Agora sei que não te abraçarei
quando te aborreceres,
que não enxugarei suas lágrimas,
que não riremos juntos de nossa escandalosa felicidade.
Agora sei
que meus cabelos não
embranquecerão ao teu lado,
e que não serás testemunha
de minhas caduquices.
Agora sei,
que não teremos netos,
e que nem seremos infelizes juntos.
Não terei de ti o que quero,
não terás de mim o que tenho a oferecer,
e saber disso me enche
de uma saudade
de tudo o que
agora sei
que não viveremos jamais.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Harmonia dos Prazeres






Quando Harmonia dos Prazeres chegou à casa de Dona Iolanda, ainda respondia pelo nome de Agostina Maria da Silva e tinha a cabeça infestada de piolhos. Vestia uma blusinha de alças com estampa de flores miudinhas tão apagada pelo uso que não contrastava mais com a saia listrada. Nos pés não usava nada, combinando com as mãos vazias. Perdera a mãe e o irmão mais novo para a fome e decidiu lutar contra o destino certo, pois possuía a teimosia dos sobreviventes. Completou dezoito anos dois dias após sua chegada à Cabeceira do Rio Seco, e bateu à porta do bordel para não ter que mendigar.


- Preciso de emprego, – falou para a senhora alta que a atendeu – senão vou morrer de fome. Não sei pedir, muito menos roubar. Tudo o que peço é um prato de comida, que para mim vale mais que ouro agora.


- Entre garota, não negocio nada com desesperados. – disse Iolanda, amarrando os cabelos – Coma alguma coisa e depois me diga se ainda quer trabalhar para mim. A vida aqui é dura e triste, não a recomendo para quem tem outras habilidades.


- Dona, conheço a dureza da vida. Nada mais triste que ficar sozinha nesse mundo com a morte esperando o momento certo para te levar. Acredite, se eu tivesse saída estaria lá.


- Qual seu nome menina?


- Harmonia. Harmonia dos Prazeres.


Dona Iolanda soltou uma gargalhada de estremecer seus braços gordos e compridos.


- Seu nome de batismo tolinha, não acha que vou acreditar que te deram um nome já pensando que seu fim seria a vida!


Agostina se apresentou, mas decidiu logo na primeira semana que usaria o nome inventado para não desrespeitar o que herdara da avó paterna. Escolheu um que fosse ao mesmo tempo, uma identificação e uma propaganda. Dona Iolanda achou engraçado e a apelidou de Tininha só para contrariar a mulata.


A chegada de Harmonia coincidiu com a festa da igreja, e como não era conhecida, conseguiu passar pelo crivo das beatas e montar uma barraquinha, um sonho antigo de dona Iolanda. Oferecia queijadinhas oficialmente, mas o prêmio secreto para quem comprasse o maior número de doces era a estreia da menina. Dona Iolanda garantiu que nenhum homem havia tocado a moça, e em pouco tempo não havia vestígio de queijadinha na barraca improvisada. O sucesso entre os homens da cidade foi tanto, que para identificar o ganhador, Harmonia precisou recorrer ao caderninho onde registrou as vendas.


O prefeito ficou em terceiro lugar. Sua esposa, sem saber do prêmio, pediu que ele desse algumas para os eleitores mais chegados. Se tivesse sido a quermesse do ano passado ele certamente ganharia, mas esse ano estava com a popularidade baixa e pouquíssimos amigos. Em segundo ficou seu Finório, da padaria Flor de Cabeceira. Comprou cento e cinquenta para vender durante a semana dizendo que eram fresquinhas. O vencedor foi Tácito Eurípedes, o funileiro, que pagou por duzentos e quinze queijadinhas e comeu só uma. As outras devolveu para serem vendidas novamente, recebendo das senhoras da igreja os mais altos elogios. Disseram que o pobre pagava uma promessa feita pela mãe quando ainda era um bebezinho. A verdade é que ele estava enfeitiçado pela beleza inolvidável da morena de ancas largas e seios púberes, que andava descalça pelas ruas cumprimentando a todos com um sorriso estreme.


A primeira vez que Tácito viu Harmonia, soube que seu destino estava traçado desde o nascimento e teve medo. Viu nos olhos da moça que nascia naquele instante para morrer por causa dela. Na noite da quermesse, quando soube que as queijadinhas eram o ingresso para os braços da amada, reuniu todas as suas economias e comprou o direito de estrear sua musa. Nutria a esperança de convencê-la a viver com ele e confiava na força de seu amor. Tinha para oferecer uma vida simples, é verdade, mas honesta. Nos dias que se seguiram, arrumou a casa e fabricou utensílios novos para a cozinha, comprou mais uma cadeira e algum tecido para forrar a cama. A ansiedade foi tanta que o rapaz começou a passar mal no dia anterior ao marcado para receber o prêmio, e caiu de cama, gravemente enfermo.


O caso é que demoraram em socorrê-lo, pois morava só em uma das casinhas da vila de dona Argentina, e por ser muito reservado, os vizinhos não estranharam sua ausência durante quase dois dias. Quando faltou à entrega do prêmio a que tinha direito é que souberam do acontecido, porque a cafetina foi ela própria à casa do fazedor de lampião se desobrigar do compromisso. Saiu de lá mais enlaçada do que jamais fora em toda a sua vida. Não pode negar ao moribundo o pedido que fez a ela de trocar uma noite com Harmonia pelos cuidados da moça durante sua enfermidade. Assim, dali a um quarto de hora, Harmonia descia a Rua da Alvorada para se meter nos corredores apertados da Vila Buenos Aires com a missão de servir de consolo a Tácito Eurípedes nos dias de convalescença. A moça não achou a função difícil, coisa pior era passar fome. De resto suportaria quase tudo. Cuidava da alimentação de Tácito, fazia sua higiene, limpava seus penicos, aplicava-lhe compressas... Tudo com uma graça que só fazia aumentar a admiração do rapaz por ela. O doente esteve a ponto de piorar só para estender aqueles dias de cumplicidade; mas Harmonia era uma santa, e fez o milagre de erguer o funileiro da cama em pouco mais de uma semana.


Quando avisou que não voltaria mais, Harmonia foi surpreendida com um homem aos seus pés, declarando todo o amor que sentira desde a primeira vez que seus olhos vislumbraram tamanha beleza e graciosidade. O assombramento da jovem pode ser percebido pelo corpinho arrepiado e trêmulo. Jamais na vida alguém antes havia dito que a amava, sequer demonstrado, e agora aquele rapaz a fazia perceber-se gente, merecedora de algum sentimento. Chorou. Tácito ergueu-se de pronto e, enquanto observava a lágrima descer lentamente pelo rosto de Harmonia, pegou a mãozinha da moça e colocou o anel que havia sido de sua mãe. Era uma joia fininha, sem pedras ou qualquer outro enfeite, mas para os dois equivalia ao caminho que trilharam ao encontro um do outro. Se perguntassem a Harmonia se mudaria alguma coisa em seu passado naquele instante ela responderia que nada, simplesmente porque tinha medo que algo a desviasse daquele momento mágico. Amou Tácito pelo amor que ele sentia por ela. Todas as tristezas de sua vida desapareceram e deram lugar à alegria de saber que, finalmente, pertencia a alguma história. Só que não é o passado que devemos temer, ele não pode nos surpreender. O que nos pega desprevenidos, o que não podemos evitar, é o que está por vir. O futuro é que esconde atrás de suas cortinas nebulosas o que nos eleva e o que nos abate. E o futuro de Harmonia e Tácito ignorava por completo os planos que os dois passariam a fazer dali para frente.
Naquele mesmo dia, a mulata e seus passos musicais desceram a rua de chão batido em direção ao bordel à beira do rio para pegar suas coisinhas e agradecer à Dona Iolanda e todas as meninas pelos dias que passara ali. Levava nas mãos um trocadinho, presente do noivo, para que se hospedassem em uma pensão na cidade até o dia do casamento. Dona Iolanda recebeu a notícia com estardalhaço e festejos. Abriu uma garrafa de sidra e distribuiu entre copos improvisados para brindar o fim de uma carreira que ela sabia não ser o dom da moça. Depois que as meninas ficaram satisfeitas com o relato do pedido feito à Harmonia, a dona da casa chamou a noiva a um canto e perguntou:
- Tininha, o rapaz sabe do que aconteceu nos dias que você passou aqui?
- Não senhora, Dona Iolanda. Não tive coragem de contar. Sei que ainda não conheceu mulher, e conto com isso para não ser descoberta. Não é justo que eu perca tanto amor porque meu homem chegou atrasado alguns dias. Se ao menos ele não tivesse adoecido...
- Não lamente querida, tudo vai dar certo. Se você fizer exatamente o que eu mandar ele não chegará a desconfiar, mesmo que seja experiente.
A confiança que Harmonia depositava naquela senhora de olhos infantis era tanta que deixou a preocupação de lado e voltou para as perguntas das colegas.
Dona Iolanda nunca faltou a um compromisso e agora não tinha sido diferente. Quando Tácito trocou a estreia da menina por seus cuidados de enfermeira, Iolanda procurou Finório e, como era justo, lhe concedeu o direito de inaugurar os serviços da morena no bordel. Acontece que a moça tinha o poder de enfeitiçar os homens, para sua sorte e desgraça, e seu Finório tornou-se um cliente assíduo e desesperado. Não se satisfez com a noite do prêmio, e voltou em todas as outras depois dela. Sempre que Harmonia voltava da casa do pobre funileiro encontrava o dono da padaria a esperar por ela.
Na noite do pedido de casamento, quando Dona Iolanda avisou ao comerciante de que teria qualquer menina como compensação pelo fim dos serviços de Harmonia, o homem quebrou todo o salão e foi ao hotel a procura da moça. Harmonia não o recebeu, em seu lugar mandou um dos empregados do hotel com uma arma à cintura para convencer Finório de que tudo estava acabado. Tinha medo que o escândalo chegasse aos ouvidos do noivo, decerto ele terminaria tudo se soubesse que estava sendo enganado. Deitada em sua cama, chorando e pedindo aos Céus que aquilo acabasse logo, Harmonia ouviu quando Finório foi arremessado à calçada e gritou:
- Isso não vai ficar assim, morena! Você é minha e de mais ninguém!
Harmonia ainda esperou que Finório voltasse para buscá-la, mas nada aconteceu. Dormiu sentada atrás da porta com medo de um arrombamento.
 Pela manhã, tomou um banho e partiu para a casa do noivo decidida a contar a verdade para não ficar exposta a ameaças. A rua tranquila tinha a cara da vida que queria levar dali para a frente, crianças já brincavam nas ruas e ela imaginou seus próprios filhos ralando joelhos naquelas calçadas. As gargalhadas das crianças deram a Harmonia a esperança de que seria aceita, afinal o amor de Tácito parecia forte demais para esmorecer diante de uma decepção. Por certo ele ficaria aborrecido, talvez pedisse um tempo para pensar. Harmonia esperaria pelo tempo que fosse necessário, o importante era lutar pelo homem da sua vida. Empurrou o portãozinho com o coração aos pulos, mas confiante. Achou estranho a porta estar aberta e por um segundo teve medo do que encontraria, mas a casa estava mergulhada em silêncio e paz. Dirigiu-se ao quintal já despreocupada e percebeu que havia alguém ali que não parecia seu noivo. Ao aproximar-se do homem sentado nas raízes do grande e velho carvalho, reconheceu Finório e estremeceu. Só depois viu o noivo deitado no chão, o corpo ensanguentado e imóvel. Sem forças para gritar, olhou para o homem como quem fizesse uma pergunta e ouviu a resposta que tanto temia:
- Eu avisei, morena. Agora volte para o trabalho e nunca mais me diga adeus.    




segunda-feira, 10 de outubro de 2011

João Mazelas e a Alma Penada.







João Eurico Martinez era coveiro. Trabalhava no Cemitério Municipal de Cabeceira do Rio Seco há tanto tempo que já nem se lembrava de ter feito outra coisa na vida. Há alguns anos fizera planos de se mudar com a família para um sítio a caminho de Tornados, mas quatorze dias antes da mudança um aguaceiro desceu pela cidade arrastando quase tudo e todos, inclusive a mulher e os oito filhos de João. Só lhe sobrou Quixote, o cachorro, que estava com ele na cidade vizinha.
Depois desse descalabro, o coveiro ficou conhecido como João Mazelas e tornou-se amargurado pelo arrependimento de ter deixado a família desamparada, mesmo com a insistência da mulher para que ficasse até que os ventos espantassem as nuvens assustadoras que se formavam. Enquanto os outros moradores se uniram em mutirões para desobstruir as estradas e tirar da cidade aquela cara de apocalipse, João se mudou com Quixote para o casebre dentro do cemitério que, miraculosamente, permanecia intacto. Passou a viver isolado a maior parte do tempo e, nas raras vezes que visitava a cidade, não se podia ouvir sua voz. Comunicava-se com gestos e grunhidos, e quando não conseguia se fazer compreender, ia embora espraguejando e chutando o chão, deixando as pessoas apavoradas. Por esse comportamento excêntrico, ganhou fama de louco. A simples menção de seu nome fazia os pequeninos obedecerem aos pais de imediato. Não demorou a tornar-se uma lenda na pequena cidade, e até algumas matérias saíram na Gazeta Cabeceirense sobre aquele ícone da catástrofe local. Para fugir ao assédio de curiosos, refugiava-se nos escombros de sua antiga casa, que só estava a salvo das pessoas porque era necessário atravessar o Bosque dos Perdidos para ter acesso a ela. Ora, o Bosque era um dos lugares proibidos pelos moradores de toda aquela região, juntamente com as Terras das Rotas Diagonais e A Floresta Descomunal formavam o que havia de mais perigoso no pequeno mundo conhecido por eles, ameaçava-lhes a existência e ninguém quer deixar de existir. Não temiam a morte, mas o desaparecimento, o exílio.
Ironicamente, esse era o maior desejo de João. Queria poder evaporar. Preferia ter ido embora com a família para onde quer que eles tenham ido. Qualquer coisa teria sido melhor que aquela sensação de não pertencer mais a lugar nenhum que agora o perseguia como um inimigo interno, aprisionado em sua mente e coração, respirando junto a ele, se alimentando com ele, destruindo-o de dentro para fora numa morte lenta e dolorosa. Para aliviar um pouco sua dor, passava todo o tempo livre contemplando os restos da vida que tivera. Contrário ao que se esperava, o lugar mantinha a mesma atmosfera tranquila dos dias felizes que passara com a família. Suas visitas eram uma busca desesperada de consolo e paz. E de lembranças. Sentia-se próximo aos parentes, e se fechasse os olhos ainda podia fingir que chupava uma laranja debaixo das árvores observando as brincadeiras dos meninos. Podia jurar que o cheiro de comida o convidava para o almoço, e até conseguia ouvir o batucar das panelas.
Os moradores de Cabeceira acreditavam que o lugar era amaldiçoado. Contavam que uma família havia morrido ali a muitos anos de uma doença estranha. Curiosamente, o pai foi o único sobrevivente, exatamente como agora. O homem chegou a ser acusado de envenenar a mulher e os filhos, e acabou fugindo antes que fosse morto por populares. Depois disso a casa ficou vazia durante anos, até que João fosse morar com a família. Apesar de ser um homem simples, João Eurico não dava ouvidos a crendices, atribuía suas desventuras ao curso natural da vida e sabia que coisas ruins acontecem a bons e maus. Não havia revolta em seu coração, mas também não havia espaço. A dor tomou conta de tudo o que restou.
No dia que a esposa faria anos, João se levantou ainda de madrugada, passou um café sem açúcar, tomou de um gole uma xícara bem quente e partiu para a antiga casa colhendo flores pelo caminho para depositar debaixo da amoreira.  Andava despreocupadamente e até um pouco feliz, como se fosse entregar o ramalhete em mãos. Era como se a caminhada durasse alguns minutos, e não a hora e meia que na verdade lhe custava. Quando atravessava a última clareira, sabia que podia olhar na direção do lugar e avistar a cozinha que não havia sofrido nenhum dano, mas nesse dia, ao erguer os olhos para a casa, viu o vulto de uma figura feminina atravessar a janela e temeu. Por um instante acreditou em tudo o que as pessoas lhe disseram sobre a história do lugar e correu o mais que pode, seu coração estava indeciso sobre se devia parar ou bater cada vez mais rápido tamanho o medo que se apoderara do homem. Com certeza a esposa que havia sido envenenada pelo marido ainda vivia ali. Por isso ele escutava barulho na cozinha quando dormia. Tinha atribuído tudo aos ratos, mas agora já duvidava dos roedores.
Quando finalmente alcançou o cemitério estava ensopado de suor gelado, e os olhos esbugalhados fizeram Quixote pular nos degraus da varanda e latir para o portão. Correu para dentro de casa e vasculhou tudo procurando a Bíblia ignorada por tantos anos. Precisava esquecer aquele vulto ou não pararia de tremer nunca mais. Leu os Salmos até se sentir mais calmo, mas trabalhou aquele dia com a sensação de que os mortos acordariam de seu sono eterno e levantariam dos caixões como se da própria cama. À noite custou a dormir, mas ao levantar pela manhã sentia-se mais curioso que apavorado. Pensou em retornar ao lugar e tirar a prova do que significava aquela aparição. Partiu levando Quixote, para se sentir mais protegido.
Ao avistar a cozinha, parou por alguns minutos esperando que o vulto desse sinal de sua presença. Nada aconteceu. Ganhou confiança e aproximou-se lentamente, mas estacou diante da soleira da porta assustado com o que vira. Várias tulipas apareceram do dia para a noite, enfileiradas no que antes era o caminho para a porta principal. Aquilo para ele foi a confirmação de que o sobrenatural rondava sua vida. !
Voltou para o cemitério disposto a descobrir o que o além queria com ele. Talvez estivesse vivo por engano e agora precisasse consertar o erro de ter abandonado seus amados a própria sorte no último dia de vida deles. Como não tinha nenhum enterro, felizmente, aproveitou para dar uma caprichada na aparência geral dos jazigos perpétuos, que eram os mais esquecidos em sua rotina. Ao entrar na parte nobre do cemitério, ficou impressionado pela primeira vez com aqueles anjinhos e suas harpas, e teve a impressão de uma ou outra fotografia ter-lhe mandado uma piscadela. Sacudiu a cabeça e murmurou de si para si que estava enlouquecendo. Tantos anos trabalhando com mortos que começava a variar! O dia terminou sem que pudesse colocar flores nos vasinhos sobre os túmulos.
- Amanhã eu ponho as flores mais bonitas que encontrar pessoal! – bradou em alta voz, ao mesmo tempo em que pensava no absurdo da situação. Definitivamente precisava de um médico de doidos, concluiu.
Chegou à casa tão exausto que mal pode terminar o banho. Adormeceu assim que sua cabeça tocou o travesseiro e sonhou. Em seu sonho escrevia um bilhete para o fantasma que agora habitava sua casa destruída e deixava sobre a mesa da cozinha. Mas ao voltar para pegar a resposta era recebido por seus filhos e esposa, com a alegria que lhes era comum. Acordou triste com o fim do que para ele era um desejo mais que um sonho, mas passada a primeira impressão, sentou-se e escreveu o tal bilhete com a brevidade que fazia parte de seu caráter. Dizia assim:
- Senhora Seja Lá Quem For, o que queres de mim?
Foi até sua casa e depositou o bilhete na mesinha da varanda. Não teve coragem de entrar porque achou que seria uma falta com a nova moradora, mas percebeu que havia um balanço na amoreira e arrepiou-se inteirinho. Foi para o barraco do cemitério satisfeito por não ter dado um esbarrão acidental naquela criatura do outro mundo.
Conforme prometera, encheu o cemitério de flores e aproveitou a tranquilidade de uma cidade sem mortos novos para capinar o pátio e lavar o chão das capelas. Sem perceber sua tristeza foi dando lugar a rotina pesada de trabalho e foi dormir mais preocupado com a resposta do fantasma que com a solidão da vida sem o amor dos seus pequenos. No dia seguinte, partiu para o antigo lar sem ao menos tomar o café. Encontrou no mesmo lugar de seu bilhete, um outro quase tão breve e sincero.
- Senhor Martinez, só peço que me permita passar um tempo no que foi sua casa um dia. Prometo fazer as melhorias que estiverem ao meu alcance como pagamento pela hospedagem. Gostou das tulipas?
Como havia levado papel e caneta, João Eurico respondeu:
- Fique o tempo que precisar, não tenho usado a casa. Só gostaria de continuar visitando o lugar de vez em quando para matar a saudade de meus entes queridos. Gostei sim, mas prefiro margaridas.
No dia seguinte a resposta o aguardava debaixo de um vasinho de margaridas:
- Sinta-se a vontade para vir quando quiser. O lugar é calmo e uma visita não me faria mal.
Os dias se passaram e a correspondência entre os dois tornou-se um hábito. Através dos bilhetes João descobriu que a alma se chamava Florípedes Garcia, que havia perdido o pai tragicamente, que agora vivia só, e que um dia tinha sido noiva, mas fora abandonada no altar. Trabalhara na roça desde criança e nunca frequentara a escola, mas aprendera a ler com a mãe antes que ela morresse vítima de uma picada de cobra na lida com a cana. À alma João contou da tragédia que se abatera sobre sua família, da infância rica quando seu pai ainda era vivo, do trabalho no cemitério e da solidão que o acompanhava mais por gosto do isolamento que por falta de oportunidade. Tinha uma irmã na cidade, mas só a visitava uma vez por mês. Tornaram-se assim os melhores amigos e João esqueceu-se de sua dor. Na véspera de Natal, o coveiro recebeu um bilhete diferente:
- Querido amigo, sinto dizer que terei de partir amanhã bem cedo. Obrigada por tudo o que fizestes por mim, jamais me esquecerei de tanta bondade. Infelizmente, o lugar para onde vou é muito longe daqui, apesar da dor que isso me causa, sou obrigada a constatar que essa despedida é um adeus.
João pegou o bilhete debaixo do vasinho de margaridas como de costume, e ao terminar de ler entrou em desespero. Não era justo perder de novo uma pessoa por que fosse tão apegado. “Que sina a minha!” – pensou. Pegou um papel amassado no bolso da calça e escreveu apressadamente:
- Florípedes, sei que o teu compromisso é importante e imagino que não seja possível escapares dele. Contudo, não posso me despedir de você por bilhetes. Preciso vê-la! Se não olhar para o que quer que sejas, jamais poderei suportar tua ausência. Sou um homem acostumado a perdas, mas todas elas olharam em meus olhos antes da despedida. Peço-te, me concedas um encontro. Amanhã pela manhã, estarei aqui para vê-la partir.
Para João Eurico uma noite nunca havia demorado tanto a passar. Não pode pregar o olho, sentia uma angústia mortal, como se não fosse sobreviver à dor de mais uma separação. Pensou que estava perdidamente apaixonado por uma criatura do outro mundo, e estava disposto a partir com ela para o além. Sem poder suportar a espera, levantou-se no meio da noite e atravessou o bosque, para esperar pelo amanhecer recostado à amoreira. Em frente a casa que agora pertencia ao seu amor fantasmagórico, João Eurico adormeceu.
Pela manhã, foi acordado por uma voz suave que o chamava:
- João? João, acorde!
De um salto o homem se colocou de pé, boquiaberto e estatelado. Florípedes caiu na gargalhada e perguntou:
- Que é isso homem? Parece que estás diante de uma assombração! Assim você me ofende.
- E não estou?
- Não está o quê?!
- Diante de uma assombração, oras?!
- Claro que não homem! Endoidou de vez foi?
- Mas você não é a mulher que fora envenenada pelo marido e voltou para resolver algum assunto pendente neste mundo?
- João, você está me assustando. Que assunto é esse?
- Espere. Quem é você?
- Como quem sou eu? Sou Florípedes.
- Sim, isso eu sei. Mas você não morreu?
- Ai, caramba! Não é que o povo tem razão e você é doido de pedra!
- Florípedes, me dê um instante para entender. Acho que fiz uma confusão enorme sugestionado pelo medo. Se você não é uma alma, porque não se apresentou há mais tempo? E porque mora nesses escombros?
- Não me apresentei porque você começou a fazer contato por bilhetes, e como conheço sua história, respeitei a distância que foi estabelecida. Agora, o motivo pelo qual estou escondida aqui é um pouco mais complicado. Perdi meu pai na mesma enchente que levou sua família. Tínhamos uma pequena quitanda em sociedade de um amigo, um homem impiedoso que roubava meu pai descaradamente. No mesmo dia que enterrei meu único parente, ele entrou em minha casa e me avisou que tudo o que eu acreditava pertencer a meu pai, na realidade era dele. Tenho certeza que é mentira, mas não sei como provar. Ainda acrescentou que me despejaria em uma semana, a não ser que eu aceitasse me casar com ele. O resto você pode imaginar. Conheci sua história através dos jornais e sabia que morava no cemitério. Nunca pensei que continuaria a visitar essa casa, pelas lembranças que lhe traria. Achei que aqui seria um excelente esconderijo. Há alguns dias tenho feito contato com asilos em outras cidades me oferecendo para cuidar dos idosos. Ontem recebi uma proposta para trabalhar com uma senhora em Poço das Almas e estou indo para lá. Sinto muito, mas não tenho escolha.
- Você pode me responder uma pergunta?
- Quantas você quiser.
- Você me ama?
- Amo.
- Então você tem uma escolha. Venha comigo!
E caminharam juntos, a alma penada e o maluco da cidade, para todo o sempre.