Há muitos anos, quando Poço das Almas ainda era uma pequena aldeia,
vivia por lá um tapeceiro de nome Álvaro, que trabalhava diligentemente na
esperança de juntar o dinheiro necessário para o dote de sua amada. Era do
conhecimento de todos os habitantes do lugar que Álvaro e Piedade haviam se
apaixonado ainda na infância, e que só a pobreza do rapaz os impedia de começar
uma vida juntos. O pai de Piedade não era rico, mas não admitiria que a filha
tivesse, ao casar, uma vida mais dura que a que ele podia dar.
O desejo de merecer Piedade fez com que o tapeceiro vivesse somente com
o que fosse necessário para sua sobrevivência, mas todo o seu esforço era
inútil, pois nunca chegava à quantia que bastasse para o pai de Piedade. Na
verdade, seu Hamilton queria casar a filha com um homem rico, e sabia que
conseguiria se insistisse.
Alertado pelos amigos de que perderia Piedade para o filho de um grande
fazendeiro das redondezas, Álvaro reuniu seus mais belos tapetes e partiu para
uma viagem pelas cidades próximas, numa tentativa desesperada de vendê-los e
obter o suficiente para casar-se com o amor de sua vida. Alugou uma carroça com
o ferreiro prometendo pagar-lhe ao voltar, e partiu de madrugada deixando um
bilhete para Piedade preso à janela do quarto da moça.
Visitou aldeias, cidades, vilas, e todas as casinhas que encontrou pelo
caminho, mas pouco vendeu. As coisas estavam difíceis aquele ano, e as pessoas
não podiam gastar em nada que não fosse comida. O que Álvaro conseguiu mal dava
para pagar o aluguel da carroça e comprar mantimentos para ele e o jumentinho
que o acompanhava naquela dura empreitada. Desanimado, resolveu voltar para
casa porque sabia que gastaria menos do que se persistisse naquele
despropósito; pegou o atalho pela Floresta Descomunal, atravessando o Lago das
Intempéries em seu ponto mais perigoso. O tapeceiro sempre fora daqueles homens
que não se assustam com nada, real ou inventado, que atravesse seu caminho, mas
quando saiu do lago e percebeu que estava perdido, desesperou-se. A única
ameaça que infundia gelo em seus ossos era a de ficar sem Piedade, no mais era
apegar-se em Deus e enfrentar com honra. Mas se demorasse demais para encontrar
o caminho de volta para casa, certamente perderia a amada, e isso não poderia
permitir.
Enquanto pensava no que fazer diante de uma emergência tão grave como
aquela, escutou gemidos sufocados que pareciam vir de um lugar não muito
distante de onde estava. Partiu na direção dos sons agonizantes e, depois de
alguns minutos, deu com uma senhora presa até a cintura numa cova cheia de
lama, aberta para capturar animais de caça, muito comum por aquelas bandas.
- Por favor, meu filho, tire-me depressa daqui! – implorou a senhora.
- Espere um minuto, senhora, - respondeu o rapaz – pensarei em alguma
coisa.
- Seu jumento! – disse ela – Amarre uma corda nele e jogue a outra ponta
para mim. E enquanto ela falava, a lama foi cedendo mais rápido e ela quase
desapareceu.
Num impulso de salvar a velha, Álvaro desaparelhou o jumento, amarrou
uma corda em seu pescoço e atirou a outra ponta em direção ao poço de lama. O
peso da senhora somado à força da sopa de terra que a segurava, foram demais
para o jumentinho e ele também foi parar no poço. Mas antes que ele submergisse
por completo, a senhora ganhou energia e conseguiu escalar o bicho até a borda
do poço, onde foi puxada por Álvaro. O rapaz ainda tentou salvar o animal, mas
foi em vão.
Depois que conseguiram se restabelecer, a mulher olhou para Álvaro e
disse:
- Sinto muito pelo animal, meu filho. Chamo-me Bibiana e moro há anos
nesta floresta perdida. Há anos não tenho contato com ninguém e já desistia de
lutar quando você apareceu. Sei que é minha responsabilidade o que aconteceu a
seu jumento, portanto quero te recompensar com um presente muito valioso.
- Não é necessário, fiz o que deveria ter feito. Jamais me perdoaria se
deixasse de socorrer alguém em apuros.
- Faço questão. Além do mais, vejo em seu coração que você precisa muito
do que tenho a oferecer. Venha comigo.
E Álvaro não soube dizer não ao chamado. Caminhou por entre a densa mata
puxando a carroça com os tapetes, mesmo depois que Bibiana o garantiu que seus
produtos não seriam mais necessários. Andaram em silêncio até que dessem em uma
clareira e uma casinha simples no meio dela, cercada de plantações de temperos,
ervas e toda sorte de plantas tropicais usadas pelos índios para os mais
variados fins. A casinha, apesar de nitidamente pertencer à outra época, não
parecia ter sido vítima do óxido do tempo; suas paredes de pedra brilhavam em resposta
aos raios de sol que se esgueiravam pelas folhagens alcançando alguns pontos do
lugar; era toda ladeada por uma varanda ampla que desembocava numa escadaria
esculpida de acordo com os acidentes do terreno até o meio do pátio, e o
telhado era estranhamente parecido com um copo-de-leite emborcado. Álvaro podia
jurar que a porta se abriu antes do toque daquela senhora misteriosa, mas antes
que pudesse analisar a cena, escutou o convite:
- Entre e se acomode, vou à cozinha preparar um chá.
- Não precisa... – e Bibiana desapareceu subitamente.
Antes que Álvaro pudesse contar todos os livros de receitas estranhas
que havia espalhados pela casa, Bibiana voltou carregando uma bandeja com os
chás e um medalhão de prata.
- Isto é um talismã, um medalhão da sorte. – disse enquanto estendia o
objeto na direção do rapaz – Enquanto mantiver esse cordão pendurado ao
pescoço, poderá desejar quase tudo que se tornará realidade.
- Quase?! – perguntou Álvaro, curioso.
- Sim. Há três coisas que o medalhão não realiza para seu dono: ele não
pode lhe dar a eternidade, não pode fazer com que pessoas o amem e não pode
trazer de volta seus entes queridos que já se foram. Não sendo uma dessas
coisas, tudo o mais será seu se quiseres. Mas existe outra coisa que você
precisa saber. Nenhum dos seus desejos poderá ser desfeito, pense bem no que
vais querer daqui para frente porque será definitivo. – E dizendo isso, colocou
o cordão no homem. Álvaro riu, mas agradeceu. E disse tranqüilo:
- A única coisa que desejo agora é achar o caminho para casa.
- Então vá.
Quando o rapaz passou pela porta da casa de Bibiana, ao invés da mata
garrida e imponente, estava na trilha que levava a sua aldeia, provavelmente a
um dia de caminhada. Precisou de algum tempo para assimilar o acontecido e
concluiu:
- A velha falava a verdade!
Imediatamente, levado pelo desejo de chegar o mais rápido possível a
casa de sua amada, e em condições de pedi-la em casamento, desejou riquezas,
boas roupas e uma comitiva. Tudo apareceu antes de duas piscadelas, e Álvaro se
divertiu tanto com a novidade que resolveu encontrar um lugar para estabelecer
um castelo, mobiliá-lo, colocar nele animais e empregados, um fosso, alguns
guardas, e tudo o mais que pode imaginar. Levou alguns meses assim, a um dia de
casa, mas ocupado demais com a arrogância recém adquirida para voltar sem toda
a pompa que acreditava merecer agora. Antes de entrar na aldeia, se fez
anunciar por empregados durante três dias seguidos, levando presentes aos
moradores e tocando trombetas pelas ruas. Quando finalmente resolveu aparecer,
descobriu que Piedade havia se casado há alguns meses, que o casamento havia
sido o dia mais infeliz de sua vida, e que a tristeza carregou-a para o leito
de enferma durante semanas, delirando que seu amado estava vindo para buscá-la.
Há exatamente um mês ela não resistiu e morreu. Álvaro soube que esse foi o
tempo que passou enlouquecido com as novidades da riqueza e prostrou-se. Levou
algum tempo desatinado até que se lembrou de Bibiana e resolveu ir a sua
procura pensando que se a matasse, talvez pudesse reverter a situação. Chegou à
casinha triste na clareira no meio da mata e encontrou um rapazote tocando uma
flauta nos degraus de pedra.
- Rapaz, onde está a bruxa que mora aqui? – perguntou com sangue nos
olhos.
- Ela não mora mais aqui não senhor, foi embora hoje cedo e disse que eu
poderia ficar aqui.
- Você sabe para onde ela foi?
- Sei não senhor.
- Obrigado, rapaz. Tome cuidado com essa casa que ela é amaldiçoada.
- Senhor!
- Pois não.
- Desculpe a minha ousadia, mas é muito bonito o medalhão que o senhor
carrega.
- Pode ficar com ele, mas ainda é pior que a casa. – disse, enquanto
atirava o medalhão para o rapaz.
Álvaro partiu para dentro da mata, certo de que alcançaria a bruxa.
Assim que ele desapareceu pelas folhagens, o rapazinho se transfigurou em
Bibiana e sorrindo disse:
- São engraçados, os homens. Não escutam as advertências que fazemos e
transformam o mal em bem. Não satisfeitos, ainda procuram quem os ajuda para
agradecer com a morte. Esse nunca mais vai sair desta mata. Está condenado. E o
medalhão fica comigo para que eu escolha alguém que realmente o mereça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário