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sábado, 31 de dezembro de 2011

A Favorita












Fui eleita, entre todas,
preferida dum senhor,
tinha coroa e vestido,
anel, cetro e louvor.
As outras até tentaram
inutilmente alcançar
as graças que possuíam
meus passos ao caminhar.
Meu vestido pesava
trinta quilos de ouro,
eu carregava perfumes
nas minhas botas de couro.
As tranças dos meus cabelos
eram longas e fortes,
tocavam meus tornozelos
e ao meu rei davam sorte.
Fui posta ao lado dele,
a sua esquerda fiquei,
bem perto do coração
do meu nobre e bondoso rei.
Do alto eu podia ver
os olhares que lançavam
as que ficaram para trás
e que jamais me alcançaram.
Por lutas passei, com certeza,
que provaram meu valor,
e aos olhos atentos do rei
tornei-me seu premio maior.
Aos poucos ocupei o lugar
de outras mil concorrentes,
e mais de uma vez me disseram
que o rei nunca fora assim antes,
tão bom, compassivo e feliz,
tão certo de dias melhores,
cansado das guerras sem fim,
sensível a outras dores.
Tudo foi bom por um tempo
que parecia sem fim,
mas nada dura para sempre
e tinha que ser assim.
Quando num golpe fatal
desses que não esperamos
fui obrigada a ficar
longe do rei por uns anos,
A alegria, a paz,
e a certeza do amor,
foram deixadas para trás,
bem longe do meu senhor.
Não havia consolo
para o coração real
que desistiu de lutar
contra o destino fatal.
O meu rei dormiu para sempre,
mas até o último instante
fui a sua escolhida,
e isso para mim é o bastante.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Amor de Sobremesa






Pelas ruas calçadas e desertas da pequena cidade de Tornados, ouvir o trotar de cavalos às duas da manhã é sinal de doença, e das graves. Dona Fernanda Pinot mandara chamar o doutor para ajudá-la numa das muitas crises que o marido passou a ter depois do acidente há alguns anos. Adamastor Pinot, o marido de Dona Fernanda, caiu de seu cavalo enquanto caçava em suas terras no feriado da Independência.


Depois do acidente, o senhor Pinot ficou completamente impossibilitado de andar, dependendo tão somente dos cuidados da esposa dedicada. De tempos em tempos, o homem sentia dores horríveis, das quais não se podia crer que sairia vivo. Dona Fernanda mandava vir o Doutor Eduardo, que apaziguava a crise com seus segredos de médico da cidade.


 - Doutor Eduardo, o senhor precisa ajudar meu marido. Ele não vai aguentar se continuar a sofrer desse jeito – suplicava Fernanda, aos prantos.


- Acalme-se Fernanda! Farei o Adamastor dormir, e quando acordar a dor já terá ido embora.


- Ah Doutor, faça isso! O sofrimento de meu marido é para mim pior que qualquer outra dor que eu sinta. O senhor não entenderá jamais o motivo de minha angústia, mas eu não posso ouvi-lo sofrer. Seus gritos me buscam onde estiver, acompanham meus sonhos, é um tormento o que acontece nesta casa. Veja o senhor que Santinha, minha empregada há tantos anos, deixou-nos por não suportar a gritaria desse infeliz.


- Acalme-se Fernanda! Não precisamos de uma crise de nervos aqui. Vá dormir que eu ficarei com Adamastor até amanhecer.


- Tem certeza, Eduardo?


- Tenho sim. Vá, minha querida, durma enquanto cuido de meu amigo.


Dona Fernanda recolheu-se, mas não pode dormir. Sua vida resumia-se a acompanhar o marido em sua convalescença, mas é certo que não fora sempre assim. Chamava-se Fernanda Gonçalves quando solteira, e fora o primeiro nome que ocorria aos pais que desejavam casar seus filhos nas redondezas de Tornados. Ainda agora conservava a beleza adolescente, e debaixo de suas roupas severas havia um corpo mal tocado pelo amor, que emanava um calor luxuriante quando não se guardava certa distância dele. Havia nela toda uma beleza selvagem, que contrastava com sua educação aristocrática e seus modos de princesa. Enamorou-se de Eduardo quando ainda eram crianças e, embalados pelos ventos vespertinos no balanço atrás da casa de Fernanda, prometeram amor eterno, ignorando que os planos do Senhor Gonçalves para a filha já haviam sido traçados. Quando soube que o pai dera a palavra a Doutor Luís Pinot de que a casaria com Adamastor, a menina tentou fugir com Eduardo. Foram capturados no trem para Cabiceira do Rio Seco horas depois. Fernanda voltou para casa, e passou trancafiada em seu quarto até o dia do casamento; Eduardo foi devolvido ao pai com o seguinte aviso do senhor Gonçalves:



- Medeiros, quero que saibas que muito me custou não meter uma bala na cara desse rapazote, e minha consideração se deve à amizade de tantos anos que tenho contigo. Felizmente, seu menino soube respeitar a honra de minha filha, de modo que só te peço que me poupes do desgosto de vê-lo novamente enquanto viver. Se respeitar meu desejo, terá de mim a garantia de que não tocarei em um fio de cabelo desse irresponsável.


Eduardo foi mandado à Paris para estudar ainda naquela semana. Só voltou dez anos depois, quando a geração dos Coronéis já havia dado espaço para os doutores formados na Europa. O único remanescente era Adamastor Pinot, que ele encontrara já prostrado na cama, vítima do acidente fatídico. Soube pelos velhos amigos que Adamastor ficara paralítico no segundo ano de casado e, que muitos acreditavam não ter sido um acidente.


 - Por que alguém levantaria uma suspeita dessas? – perguntou Eduardo.



- Conversa de bêbados! - disse o dono do bar onde estavam - Acho melhor vocês irem. Já beberam demais.

Duas semanas depois de sua chegada, Doutor Eduardo recebeu a visita de um empregado da fazenda Pinot à hora do jantar. Era um rapaz magrinho, com olhos grandes e vazios, e com fama de poucas palavras; carregava nas mãos um bilhete que entregou ao Doutor. Eduardo abriu e reconheceu imediatamente a letra de Fernanda: “Preciso que venhas. Traga sua maleta.” Quando chegou à casa da antiga namorada recebeu indicações de subir ao quarto principal, onde encontrou Fernanda sentada em uma cadeira francesa, com uma camisola branca que realçava sua pele morena e o contorno perfeito de seu corpo. Por alguns instantes, Eduardo não soube o que fazer, e precisou que Fernanda o mandasse fechar a porta para voltar a pensar no inusitado da situação.


- Não aguento mais Eduardo – disse a mulher – Se ao menos você nunca tivesse voltado eu poderia suportar a vida solitária que tenho, mas desde o dia em que eu soube de sua chegada não pude mais dormir ou comer sem pensar no quanto esperei secretamente por uma nova oportunidade de te ver de novo. Sei que não devemos, mas cansei de ser prudente. Como você já deve saber, meu marido está inutilizado há anos e minha única função desde o acidente tem sido a de enfermeira. Sinto-me sufocada e infeliz, sinto sua falta.


 - Imagino que seja difícil para você, mas eu não poderia me aproveitar de uma situação como essa. Você está nervosa e cansada, não está pensando direito. Vai se arrepender amanhã e me culpar por não ter te respeitado. Além do mais, as pessoas vão saber e sua reputação será comprometida. A minha presença aqui hoje talvez possa ser entendida como uma visita de médico fez bem em me mandar trazer a maleta...


.- Não ouse me rejeitar Eduardo. Por que me humilhas dessa maneira? Não me amas?


- Claro que amo! Você não entende? Será o nosso fim termos um caso, acabaremos com tudo o que sentimos durante todo esse tempo. E quando as pessoas ficarem sabendo...


- Não me importo! Por favor, não me faça implorar!


- Você sabe o quanto me é difícil dizer não, mas não tenho escolha. Eu seria o pior dos homens se me aproveitasse de uma situação como essas.


- Não é justo! Fomos separados contra nossa vontade! Se eu estivesse com você teria um marido agora, e não um inválido que só me dá trabalho e que nem era melhor antes do acidente...


- Chega Fernanda! Não vê que o que está dizendo é injusto! Se tivéssemos ficado juntos talvez eu estivesse naquela cama agora, e você estaria farta de mim!


- Saia Eduardo. É melhor que você vá agora.


Na manhã seguinte, com roupa de domingo e véu sobre a cabeça, Fernanda apareceu no sobrado velho dos Medeiros para se desculpar pelo descontrole com Eduardo. O Doutor recebeu-a com o mesmo amor de sempre, e o mesmo respeito.


- Eduardo, só vou acreditar que você me perdoou se aceitares ser o médico de Adamastor de agora em diante. Passemos uma borracha sobre a noite de ontem e sejamos amigos. Preciso de você ao meu lado para tentar reverter a situação de meu marido. O que me dizes?


- E o Doutor Saldanha?


- O que o Saldanha poderia fazer por meu marido já fez. Ele não possui seus conhecimentos modernos em medicina. Enterrou-se nesta cidade há mais de quarenta anos e não aprendeu mais nada. O caso de Adamastor requer um médico moderno. Quanto mais tempo ele passa sobre aquela cama, mais difícil se torna sua recuperação. Gostaria ao menos que suas crises se tornassem mais espaçadas. Seria um alívio. Por favor...


- Tudo bem, Fernanda. Não posso me esquivar de ajudar quando sou convocado com tanta insistência.


- Agora sou inoportuna também.


- Não. Só fiz uma piada sem graça.


- Quando começaremos o tratamento?


- Posso passar em sua casa depois do almoço se não for incômodo.


- Incômodo algum. Até mais tarde.


Assim Eduardo passou a ser o médico particular de Adamastor Pinot, e Fernanda conseguiu manter por perto o homem que amava, e do qual não conseguiria nunca mais manter distância novamente.



     Passaram-se meses até que Fernanda conseguisse novamente um momento a sós com Eduardo. Foi na noite que Eduardo foi chamado às pressas para socorrer Adamastor numa crise que parecia que seria a última. Fernanda lançou mão da fragilidade feminina para manter Eduardo próximo demais para resistir. O médico não pode suportar o perfume da amada, uma mistura estranha de sedução e inocência, que deixou seus sentidos confusos e fez com que respondesse pelos instintos. Foi levado por ela até o quarto que pertencera ao pai de Adamastor, e ali, entre fotografias dos homens mais notáveis de Tornados, entregaram-se a um amor urgente e proibido. Para surpresa de Eduardo, depois desse dia não pode mais suportar a distância do corpo de Fernanda, e deu adeus ao homem prudente que sempre fora, para tornar-se um desconhecido para si mesmo. Todas as tardes, depois do almoço, recolhiam-se a vista de todos os empregados da fazenda, para qualquer lugar onde pudessem estar em paz durante horas até que o cansaço os obrigasse a voltar ao convívio de outras pessoas. Logo, a notícia de que os antigos namorados haviam tornado-se amantes espalhou-se pela cidade como uma doença contagiosa, e começou a fazer estragos na vida de ambos. Fernanda não saía de casa, mas Eduardo era apontado nas ruas como um cúmplice da desgraça que se abatera sobre o Senhor Pinot, mesmo sendo impossível que tivesse feito qualquer coisa diretamente. Morava na Europa à época, e para falar a verdade, quase nem se lembrava de Fernanda. Em pouco tempo Adamastor passou a ser o único paciente de Eduardo. Os moradores de Tornados se negavam a ser atendidos pelo jovem médico, mesmo sabendo de sua competência e da dedicação que tinha aos pacientes.


Eduardo passava as manhãs mergulhado em uma profunda melancolia, e quase não podia almoçar, tão ansioso que ficava pelo momento da sobremesa, que eram os beijos e o amor de sua Fernanda. À noite, quando voltava para a solidão da casa de seus pais, era novamente acometido por uma tristeza sem fim, e dormia entregue a sentimentos de culpa por estar sendo desleal com um homem indefeso e de adoração por Fernanda Pinot. Acordava de madrugada aos sobressaltos, apavorado com sonhos perturbadores de que havia dado fim a Adamastor, e de que Fernanda o agradecia enquanto o delegado os perseguia dando tiros em suas direções. Doutor Eduardo Medeiros sentia que o romance com Fernanda o empurrava para um abismo do qual não poderia escapar, mas já estava tão envolvido que não tinha forças para fugir daquela armadilha do destino. Não deveria ter aceitado a proposta de tornar-se médico pessoal de Adamastor Pinot, isso foi realmente um despropósito. Em seu íntimo já sabia que não resistiria a Fernanda desde o primeiro dia em que foi chamado à fazenda. A visão daquela mulher de camisola branca com a pele brilhando a luz da lua ficou impressa na memória de Eduardo até o último de seus dias. Chegou a acreditar inclusive que era uma provocação da senhora Pinot que logo após aquele incidente constrangedor, ela tivesse demonstrado mais dedicação ainda ao marido, chegando à beira de um ataque de nervos. Depois, pensou que talvez fosse culpa, mas estava errado em ambos os casos.


Na verdade, ele não percebera o quanto Fernanda ficava alterada com a presença de Teobaldo, o capataz da fazenda, e não teria notado, não fosse ter escutado uma conversa entre Teobaldo e Fernanda que o deixou desconfiado. Numa manhã de primavera, como acordasse mais romântico, foi ao encontro da amada antes da hora costumeira. Encontrou-a em companhia do empregado, e mesmo não sendo um hábito seu, resolveu escutar o que falavam.


- Você está passando dos limites Fernanda. Suportei seus amantes com paciência, acreditando em sua promessa de que se cansaria deles e voltaria para mim. Esse doutor já está há tempo demais em nossas vidas e eu não estou gostando disso.


- Teobaldo, infelizmente dessa vez é um pouco diferente. Amo Eduardo e não posso continuar com o que havia entre nós.


- Sua miserável! Mulher tola! Acha que eu permitirei que escolhas outro? Já se esqueceu do que fiz por você?


- O que você fez? Deixou Adamastor inválido! Muito obrigada! Passei todos esses anos cuidando de meu marido quando deveria estar viúva. Aquele homem passou os dois anos de casamento me surrando e traindo com todas as mulheres da cidade. Agora estou condenada a ser sua enfermeira por um tempo que parece que vai ser longo. Não estou livre para continuar minha vida, e ainda estou sendo chantageada! Você não entende? Eu estava com raiva aquele dia, não era para você tomar minhas palavras como ordem e tentar matar Adamastor. Seu imbecil! Não digo que lamentaria sua morte, mas agora sinto até pena do infeliz! E você é o responsável por minha desgraça. O que havia entre nós acabou quando Doutor Eduardo Medeiros voltou para a cidade. Coloque-se no seu lugar!


- Nunca! Vou matar aquele doutorzinho e você será minha novamente.


- Não! Não faça nada contra ele. Chega! Não suporto mais. Você venceu. Hoje mesmo terminarei tudo e as coisas voltarão a ser como eram antes. Você tem minha palavra.


- Esperarei até amanhã pela manhã. Nem mais um dia. Falhei com Adamastor porque não o matei com minhas próprias mãos, preferi desafivelar a sela do cavalo que ele usaria pensando que o tombo seria fatal. Mas esse médico empoado eu terei o prazer de rasgar com meu facão. Estarei olhando para seus olhos esbugalhados enquanto sua vida estiver deixando seu corpo. Você não imagina do que sou capaz mulher.


- Imagino sim. Fique tranquilo, amanhã você me terá de volta.




Eduardo quase não pode acreditar no que escutara. O que ele faria sem Fernanda? E que tipo de mulher ela era na verdade? Uma coisa ele tinha certeza, não poderia deixá-la. Voltou para a casa principal pensando num plano eficaz, mas todos os que lhe ocorreram implicavam em derramamento de sangue. Encontrou Fernanda sentada junto ao marido.


- Você aqui a essa hora? Que surpresa!


- Precisava vir. Podemos conversar em particular?


- Claro. Acompanhe-me.


Fernanda levou Eduardo até a biblioteca, e o homem percebeu que ela havia chorado.


- Foi bom que tivesse vindo. Preciso falar com você.


- Não diga nada. Tenho uma proposta para te fazer. Permita-me passar essa noite contigo, amanhã pela manhã irei embora definitivamente se você assim desejar.


- Como sabe que eu...?!


- Não importa. O que me dizes? Uma despedida?


- Sim. Não poderia negar uma noite com o homem de minha vida.


- Então cuidemos de Adamastor. Mais tarde irei com você para seu quarto e teremos a noite toda para nós.


E assim foi. Fernanda entregou-se a Eduardo com violência e paixão, certa de que seria a última vez que estaria nos braços do único homem que conquistou seu coração. Tentou ficar acordada o máximo que pode para aproveitar todo o tempo possível, mas o amante garantiu que a acordaria antes de partir e ela adormeceu em seus braços. Quando acordou o dia já ia alto e desesperou-se ao perceber que Eduardo ainda estava ao seu lado, sentado, observando-a dormir.


- Você precisa ir.


- Não preciso não. Primeiro vamos tomar um café com todos os casais fazem.


- Não Eduardo...


- Senhora. Senhora Fernanda. Senhora atenda. É urgente! – chamou a criada, enquanto Fernanda levantava aos pulos.


- Estão batendo a porta Eduardo. Rápido, passe para o aposento contíguo.


Eduardo se levantou e foi para o outro quarto, onde Adamastor ainda dormia. Fernanda abriu a porta assustada.


- Você não sabe que não suporto ser incomodada pela manhã? Espero que tenha um bom motivo.


- Isso a senhora dirá. Teobaldo foi encontrado no estábulo hoje pela manhã...


- O que tem demais, ele dorme lá quando bebe. Deve estar de pileque Matilda! Agora eu terei que cuidar da ressaca dos empregados? Mande o Zé jogar um balde de água fria no infeliz e me deixe em paz.


- A senhora não entendeu, Teobaldo foi encontrado morto.


- Morto?! O que você está dizendo? Como?


- Não sabemos ainda. Não há marcas nem sangue, parece que teve um ataque.


- Avise para ninguém mexer no corpo. Doutor Eduardo dormiu com Adamastor. Irei chamá-lo. Já estamos descendo.


Fernanda foi ao quarto e avisou a Eduardo que foi até o corpo e constatou que o homem havia morrido do coração. Chamaram a polícia e passaram o dia ocupados com os preparativos para o enterro do homem. À noite, quando todos estavam de volta a casa o médico falou com Fernanda que ouviu a conversa entre ela e o empregado e que levantou de madrugada, aproveitou que o capataz dormia, e injetou nele uma substância que parou seu coração causando sua morte.


- Por que cometeu uma loucura dessas?


- Eu faria qualquer coisa para não ter que me separar de você Fernanda. Além do mais aquele homem havia dito que me mataria e eu não acreditei quando ele fingiu desistir. Era uma questão de sobrevivência.


- Eu te amo tanto!


- Eu sei querida. E agora não seremos mais importunados.


- Há uma coisa ainda...


- O que?


- Adamastor. Nunca poderemos ficar juntos de fato enquanto ele viver. E também é uma crueldade deixá-lo vivo com tanto sofrimento. Existe alguma maneira de por fim ao suplício desse homem sem levantar suspeitas?


- Sim, mas teremos que esperar um pouco. Seria imprudente outra morte agora. Diremos a todos que o senhor Pinot está com a saúde debilitada e eu virei morar aqui. Com o tempo a gente pensa na forma mais apropriada de resolve a questão. Certo?


- Certo. Eu sabia que você me entenderia.


- Qualquer coisa para te ver feliz, meu amor.


- Agora tenho esperanças de que seremos felizes.


Naquela tarde, o rapazinho calado que servira de mensageiro para Fernanda e Eduardo pediu para ter uma audiência com a patroa. Com a objetividade que lhe era comum, declarou que estava no estábulo quando Eduardo chegou e que tinha sido testemunha do assassinato de Teobaldo.


- O que você quer? – perguntou o médico.


- Dinheiro, claro. Ficarei em silêncio por um preço justo.


- Tudo bem. – disse Fernanda – Farei o que me pedes. Amanhã venha aqui neste mesmo horário.


Depois que o rapaz saiu satisfeito, Eduardo virou-se para Fernanda e disse:


- Teremos que adiar a partida do senhor Pinot. Dê ao rapaz o que ele pede para ganhar tempo, depois que tiverem se esquecido de Teobaldo eu cuido dele.


















segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Não diga que não avisei!




Não diga que não avisei!





Acho que sou muito fácil,
Mas todos dizem que não;
Gosto das coisas de um jeito
Que não tem explicação.
Não adianta um caderno
Com tudo tin tin por tin tin,
Que as regras dos outros
Não funcionam pra mim
Você pode até pensar
Que foi falta de castigo,
Mas meus pais fizeram tudo
O que sabiam comigo.
A língua é bem afiada,
Mas o coração é bom;
Se me tratar com carinho
Sou mais doce que bombom.
Não me ofereça presunto,
manga, quiabo e jiló;
Jaca também não me desce,
Não há uma lista pior.
Se quiser me agradar
É mais fácil que a crianças,
Me dê papel e caneta
E me encha de esperanças.
Só não tente provocar
Minha parte irritadinha
Ou você vai preferir
Beijar um galo de rinha.
Estou dizendo isso tudo
Para não ouvir qualquer dia
Que você dormiu com brisa
E acordou com ventania.
Não te prometo um amor
Que a gente vê em novela,
Ofereço a realidade
E o que vier com ela.
Há dias que vou te querer
Em outros irei me isolar,
Mas se tiver paciência
Apesar da aparente ausência
E de tanta incoerência
Eu volto a te procurar.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Soneto da Desesperança








Espero, espero, mas é tudo em vão.
Por que será que fico assim, tão triste?
Por que será que essa tristeza insiste(em)
Atormentar meu pobre coração?

De companheira, tenho a solidão,
Tomando o corpo que já não resiste;
Aquele mesmo que tu seduzistes
E que deixastes sem consolação.

Toda essa dor que transborda em minh'alma,
Que, aos poucos, vai levando minha calma,
É meu castigo por te desejar...

E trago no peito a desesperança
De estar tão perto do que não se alcança,
Como uma sombra a te acompanhar.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Breve história de um amor alegre.







Charlote e Alexander se conheceram no aeroporto de Toronto; ela: gaia, ele: tonto. Ainda se amam e ponto.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Talismã do Tapeceiro






Há muitos anos, quando Poço das Almas ainda era uma pequena aldeia, vivia por lá um tapeceiro de nome Álvaro, que trabalhava diligentemente na esperança de juntar o dinheiro necessário para o dote de sua amada. Era do conhecimento de todos os habitantes do lugar que Álvaro e Piedade haviam se apaixonado ainda na infância, e que só a pobreza do rapaz os impedia de começar uma vida juntos. O pai de Piedade não era rico, mas não admitiria que a filha tivesse, ao casar, uma vida mais dura que a que ele podia dar.

O desejo de merecer Piedade fez com que o tapeceiro vivesse somente com o que fosse necessário para sua sobrevivência, mas todo o seu esforço era inútil, pois nunca chegava à quantia que bastasse para o pai de Piedade. Na verdade, seu Hamilton queria casar a filha com um homem rico, e sabia que conseguiria se insistisse.

Alertado pelos amigos de que perderia Piedade para o filho de um grande fazendeiro das redondezas, Álvaro reuniu seus mais belos tapetes e partiu para uma viagem pelas cidades próximas, numa tentativa desesperada de vendê-los e obter o suficiente para casar-se com o amor de sua vida. Alugou uma carroça com o ferreiro prometendo pagar-lhe ao voltar, e partiu de madrugada deixando um bilhete para Piedade preso à janela do quarto da moça.

Visitou aldeias, cidades, vilas, e todas as casinhas que encontrou pelo caminho, mas pouco vendeu. As coisas estavam difíceis aquele ano, e as pessoas não podiam gastar em nada que não fosse comida. O que Álvaro conseguiu mal dava para pagar o aluguel da carroça e comprar mantimentos para ele e o jumentinho que o acompanhava naquela dura empreitada. Desanimado, resolveu voltar para casa porque sabia que gastaria menos do que se persistisse naquele despropósito; pegou o atalho pela Floresta Descomunal, atravessando o Lago das Intempéries em seu ponto mais perigoso. O tapeceiro sempre fora daqueles homens que não se assustam com nada, real ou inventado, que atravesse seu caminho, mas quando saiu do lago e percebeu que estava perdido, desesperou-se. A única ameaça que infundia gelo em seus ossos era a de ficar sem Piedade, no mais era apegar-se em Deus e enfrentar com honra. Mas se demorasse demais para encontrar o caminho de volta para casa, certamente perderia a amada, e isso não poderia permitir.

Enquanto pensava no que fazer diante de uma emergência tão grave como aquela, escutou gemidos sufocados que pareciam vir de um lugar não muito distante de onde estava. Partiu na direção dos sons agonizantes e, depois de alguns minutos, deu com uma senhora presa até a cintura numa cova cheia de lama, aberta para capturar animais de caça, muito comum por aquelas bandas.

- Por favor, meu filho, tire-me depressa daqui! – implorou a senhora.

- Espere um minuto, senhora, - respondeu o rapaz – pensarei em alguma coisa.

- Seu jumento! – disse ela – Amarre uma corda nele e jogue a outra ponta para mim. E enquanto ela falava, a lama foi cedendo mais rápido e ela quase desapareceu.

Num impulso de salvar a velha, Álvaro desaparelhou o jumento, amarrou uma corda em seu pescoço e atirou a outra ponta em direção ao poço de lama. O peso da senhora somado à força da sopa de terra que a segurava, foram demais para o jumentinho e ele também foi parar no poço. Mas antes que ele submergisse por completo, a senhora ganhou energia e conseguiu escalar o bicho até a borda do poço, onde foi puxada por Álvaro. O rapaz ainda tentou salvar o animal, mas foi em vão.

Depois que conseguiram se restabelecer, a mulher olhou para Álvaro e disse:

- Sinto muito pelo animal, meu filho. Chamo-me Bibiana e moro há anos nesta floresta perdida. Há anos não tenho contato com ninguém e já desistia de lutar quando você apareceu. Sei que é minha responsabilidade o que aconteceu a seu jumento, portanto quero te recompensar com um presente muito valioso.

- Não é necessário, fiz o que deveria ter feito. Jamais me perdoaria se deixasse de socorrer alguém em apuros.

- Faço questão. Além do mais, vejo em seu coração que você precisa muito do que tenho a oferecer. Venha comigo.

E Álvaro não soube dizer não ao chamado. Caminhou por entre a densa mata puxando a carroça com os tapetes, mesmo depois que Bibiana o garantiu que seus produtos não seriam mais necessários. Andaram em silêncio até que dessem em uma clareira e uma casinha simples no meio dela, cercada de plantações de temperos, ervas e toda sorte de plantas tropicais usadas pelos índios para os mais variados fins. A casinha, apesar de nitidamente pertencer à outra época, não parecia ter sido vítima do óxido do tempo; suas paredes de pedra brilhavam em resposta aos raios de sol que se esgueiravam pelas folhagens alcançando alguns pontos do lugar; era toda ladeada por uma varanda ampla que desembocava numa escadaria esculpida de acordo com os acidentes do terreno até o meio do pátio, e o telhado era estranhamente parecido com um copo-de-leite emborcado. Álvaro podia jurar que a porta se abriu antes do toque daquela senhora misteriosa, mas antes que pudesse analisar a cena, escutou o convite:

- Entre e se acomode, vou à cozinha preparar um chá.

- Não precisa... – e Bibiana desapareceu subitamente.

Antes que Álvaro pudesse contar todos os livros de receitas estranhas que havia espalhados pela casa, Bibiana voltou carregando uma bandeja com os chás e um medalhão de prata.

- Isto é um talismã, um medalhão da sorte. – disse enquanto estendia o objeto na direção do rapaz – Enquanto mantiver esse cordão pendurado ao pescoço, poderá desejar quase tudo que se tornará realidade.

- Quase?! – perguntou Álvaro, curioso.

- Sim. Há três coisas que o medalhão não realiza para seu dono: ele não pode lhe dar a eternidade, não pode fazer com que pessoas o amem e não pode trazer de volta seus entes queridos que já se foram. Não sendo uma dessas coisas, tudo o mais será seu se quiseres. Mas existe outra coisa que você precisa saber. Nenhum dos seus desejos poderá ser desfeito, pense bem no que vais querer daqui para frente porque será definitivo. – E dizendo isso, colocou o cordão no homem. Álvaro riu, mas agradeceu. E disse tranqüilo:

- A única coisa que desejo agora é achar o caminho para casa.

- Então vá.

Quando o rapaz passou pela porta da casa de Bibiana, ao invés da mata garrida e imponente, estava na trilha que levava a sua aldeia, provavelmente a um dia de caminhada. Precisou de algum tempo para assimilar o acontecido e concluiu:

- A velha falava a verdade!

Imediatamente, levado pelo desejo de chegar o mais rápido possível a casa de sua amada, e em condições de pedi-la em casamento, desejou riquezas, boas roupas e uma comitiva. Tudo apareceu antes de duas piscadelas, e Álvaro se divertiu tanto com a novidade que resolveu encontrar um lugar para estabelecer um castelo, mobiliá-lo, colocar nele animais e empregados, um fosso, alguns guardas, e tudo o mais que pode imaginar. Levou alguns meses assim, a um dia de casa, mas ocupado demais com a arrogância recém adquirida para voltar sem toda a pompa que acreditava merecer agora. Antes de entrar na aldeia, se fez anunciar por empregados durante três dias seguidos, levando presentes aos moradores e tocando trombetas pelas ruas. Quando finalmente resolveu aparecer, descobriu que Piedade havia se casado há alguns meses, que o casamento havia sido o dia mais infeliz de sua vida, e que a tristeza carregou-a para o leito de enferma durante semanas, delirando que seu amado estava vindo para buscá-la. Há exatamente um mês ela não resistiu e morreu. Álvaro soube que esse foi o tempo que passou enlouquecido com as novidades da riqueza e prostrou-se. Levou algum tempo desatinado até que se lembrou de Bibiana e resolveu ir a sua procura pensando que se a matasse, talvez pudesse reverter a situação. Chegou à casinha triste na clareira no meio da mata e encontrou um rapazote tocando uma flauta nos degraus de pedra.

- Rapaz, onde está a bruxa que mora aqui? – perguntou com sangue nos olhos.

- Ela não mora mais aqui não senhor, foi embora hoje cedo e disse que eu poderia ficar aqui.

- Você sabe para onde ela foi?

- Sei não senhor.

- Obrigado, rapaz. Tome cuidado com essa casa que ela é amaldiçoada.

- Senhor!

- Pois não.

- Desculpe a minha ousadia, mas é muito bonito o medalhão que o senhor carrega.

- Pode ficar com ele, mas ainda é pior que a casa. – disse, enquanto atirava o medalhão para o rapaz.

Álvaro partiu para dentro da mata, certo de que alcançaria a bruxa. Assim que ele desapareceu pelas folhagens, o rapazinho se transfigurou em Bibiana e sorrindo disse:

- São engraçados, os homens. Não escutam as advertências que fazemos e transformam o mal em bem. Não satisfeitos, ainda procuram quem os ajuda para agradecer com a morte. Esse nunca mais vai sair desta mata. Está condenado. E o medalhão fica comigo para que eu escolha alguém que realmente o mereça.


  










quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O cabotino







     Valdevino chegou à cidade de Esmeraldina com a roupa do corpo e muita conversa na mala. Seus quase dois metros e o corpo de guerreiro eram, com a cicatriz atravessada no rosto, as únicas provas de sua renomada valentia. Chegou se apresentando como caçador de criaturas bestiais, ganhando o respeito de todos na cidadezinha de casas empoleiradas, com moradores tão simples e supersticiosos que acreditariam num gato se ele dissesse que era o curupira. Dona Tertúlia, a viúva buliçosa proprietária da taberna, deu ao jovem casa e comida em troca de um marido novo. Era uma morena envelhecida pelas noites no balcão, mas com o mesmo ardor de quando era moça e ajudava o pai a servir o rum. Foi assim que o cabotino passou de forasteiro a proprietário de comércio em menos de seis meses, e enquanto sua mulher se desdobrava para atender aos clientes, o homem entretia a todos com suas histórias mirabolantes de bruxas empaladas por ele além das Terras das Rotas Diagonais, ou vampiros que receberam o duro golpe da estaca de prata depois de serem perseguidos sem trégua pelo único homem disposto a matá-los. Dizia que aquela cicatriz em seu rosto fora uma patada de lobisomem que recebera numa luta corpo a corpo e, que não sentissem pena dele, mas do bicho que havia sido estropiado sem a menor piedade.
          A taberna vivia cheia e Dona Tertúlia não reclamava da falta de ajuda, porque os homens bebiam mais quando estavam com medo por causa das histórias de Valdevino. O marido era muito carinhoso com ela, e sabia tratá-la de maneira que jamais viesse a reclamar da vida que tinha. Quando Tertúlia começava a sentir o peso das tarefas do dia, Valdevino encostava a cabecinha da mulher em seu peito axiomático, e afagava os cabelos dela com uma leveza imprópria a um homem acostumado a mosntros; se ela amanhecesse nostálgica, o homem astutamente recitava os poemas mais lindos ao pé de seu ouvido enquanto massageava sua nuca. Formavam um casal incomum, mas queriam o bem um do outro, e isso os mantinha unidos.
          As coisas caminharam bem durante alguns anos, até o dia que alguns animais começaram a aparecer mortos nas fazendas das redondezas e um grupo de homens da cidade resolveu eleger Valdevino como representante na caçada ao monstro que os atacava. 
- Há de ser lobisomem! – disse Amantino Lopes Castro.

- Claro que não! – discordou Cesário Mota Rodriguez – É vampiro, com certeza!

E os homens amedrontados começaram a discutir, sem perceber que Valdevino estava muito mais apavorado que todos juntos. Só Tertúlia desconfiou que algo não se encaixava quando viu os olhos do marido cada vez mais esbugalhados e escutou seu vozeirão afinar até sumir.

- Já sei o que fazer! – gritou o cabotino – Nenhuma caçada é bem sucedida sem um bom planejamento. Vamos nos reunir amanhã para pensar na melhor maneira de atacar essa criatura maléfica.

- Amanhã? Quanto antes melhor! Vamos planejar o ataque agora já que estamos todos aqui. – disse um velho magrinho, que parecia ser o conselheiro local.

- Isso mesmo! – concordaram todos.

- Cla- claro! – tartamudeou Valdevino. – Mas que cabeça a minha!

E os homens formaram um plano tão bem articulado quanto perigoso, já que não sabiam do que se tratava o animal misterioso. Combinaram que, no dia seguinte, todos sairiam à procura da tal besta que se atrevera a incomodá-los. Enquanto pensavam em como capturar o bicho, Valdevino repassava na cabeça o plano de fuga que armou no mesmo instante que soube da furada na qual se enfiara. E Tertúlia lia em suas expressões cada um dos passos que pretendia dar para longe dali. Depois que o último cliente saiu da taberna, a mulher perguntou ao marido:

- Que é que está acontecendo homem? Vi na tua cara o medo estampado! Conheço os homens e sei muito bem quando estão dispostos a fazer uma coisa. Você não tem a menor pretensão de caçar essa fera tem?!

- Não é bem isso. É que estou destreinado e inerme. Abandonei a vida de bárbaro e me acostumei à paz de um lar feliz.

- Pois trate de se desabituar da vida boa que tenho te dado e lute como homem para defender a cidade que te acolheu com carinho. Tenho suportado o trabalho duro sozinha e tua incapacidade de ser útil só é um orgulho para mim porque tenho um marido corajoso. Não vou aceitar que riam de mim pelas ruas ao descobrirem que não passas de um farsante. Saibas que esta noite não dormirei para que não fujas como um rato. E amanhã irá para a mata caçar esse tormento que apareceu por aqui.

Valdevino entrou num desespero maior ainda ao perceber que fugir seria impossível. Tentou convencer a mulher a deixá-lo ir, mas ela estava irredutível. Não houve jeito de escapar ao compromisso da caçada e foi tremendo e rezando o que lembrava encontrar com o primeiro bicho que perseguiria na vida. Os homens passaram a noite esquadrinhando os terrenos e seguindo pistas, e quanto mais descobriam, mais Valdevino se apavorava. Quando faltava uma hora para o amanhecer, seu Agnelo e o filho gritaram por ajuda, pois tinham encurralado o monstro. Os homens cercaram o lugar de onde vinham os rugidos e quando o bicho pulou na direção de todos, abriram fogo enquanto Valdevino desmaiava. Quando clareou e eles puderam distinguir do que se tratava a fera, perceberam que era um leão velho com uma coleira do circo da cidade vizinha. Voltaram para casa aliviados, carregando Valdevino nos ombros ainda assustado com o incidente.  Depois do acontecido, os homens perderam o costume de ouvir as histórias do cabotino na taberna; agora ele passava o tempo trabalhando no balcão, enquanto Dona Tertúlia reunia os amigos em volta das mesas para uma partidinha de carteado, que ninguém é de ferro.


    





     







quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O consumista de afetos!







Santiago entrou na cafeteria A Baronesa de olhos atentos como quem procura a pessoa com quem marcou um encontro. Toda quinta-feira era a mesma coisa, escolhia uma mesa no fundo do salão e observava com seus olhinhos oblíquos, por cima dos pequeninos óculos escuros, o movimento das moças que frequentavam o lugar. Tinha a capacidade de se fazer notar apenas quando era de sua conveniência; habilidade muito útil aos seus planos nada honestos. Quando encontrava a vítima perfeita, passava um pente sobre os cabelos engomados, empurrava os oclinhos com o dedo indicador para perto dos olhos, ajeitava a gravata, e partia para o ataque. Convidava-se para sentar com uma desculpa qualquer e discorria sobre algum assunto do universo feminino, geralmente um romance que estivesse na moda, ou o próximo baile dos Gonçalves de Campos Matos. Depois de iniciado o caminho para a cumplicidade, oferecia-se para pagar a conta e, se não fosse atrevimento, acompanhar a senhorita até seu próximo compromisso. Funcionava na maioria das vezes; depois de alguns dias de corte, todas acabavam no hotel da cidade, um lugar discreto e de serviço decente.
Santiago não era desses conquistadores que se aproveitavam das moças para tirar-lhes o dinheiro. Não! Isso ele tinha de sobra! Seu objetivo era tão somente colher daquelas flores em botão seus primeiros carinhos, e os beijos e amores ainda não maculados pelo toque de outro homem. Gostava de inaugurá-las e acreditava que lhes prestava um excelente serviço, garantia-lhes que a primeira vez fosse com um grande entendedor do assunto e com uma classe comparada somente aos de dígitos bem maiores que o dele. O rapaz não gostava das profissionais porque seu objetivo principal não era satisfazer-se fisicamente, na verdade se alimentava do afeto recebido, sentia-se importante e desejado quando era alvo do mais puro sentimento: o primeiro amor. E vivendo um romance por semana livrava-se do estorvo que é um compromisso.
Nessa quinta-feira, porém, conheceu Veneranda e apaixonou-se assim que trocaram olhares. Tinha a moça uma pele emprestada de pêssegos, os cabelos ruivos levemente ondulados caíam-lhe pelas costas, soltos, até os quadris; os olhos eram tão grandes e azuis, que pareciam dois mundos paralelos, postos assim para fazer com que se tenha dúvidas sobre em qual deles se quer viver; e a boca era um convite ao amor. Santiago esqueceu-se de respirar por alguns segundos quando a viu levantar-se e dirigir-se a ele.
- Posso me sentar? – perguntou a menina.
- Claro – respondeu Santiago, pigarreando e esticando o peito.
- Não pude deixar de notar que estava olhando com certa simpatia para mim. Chamo-me Veneranda. E o senhor?
- Santiago. Desculpe-me se dei essa impressão, mas olhava para a rua com certeza, e não para a senhorita.
- Não negue. Sentir-me-ia ofendida.
- Bem, sendo assim, sou obrigado a confessar que me chamastes a atenção. Se me permite dizer, tua beleza...
- Eu sei, minha beleza é também minha maldição. O que é a beleza senão a impressão de que vemos o perfeito quando ele não existe? A beleza é um embuste, meu caro! Ela dura apenas o tempo necessário para te acostumares com ela. Alguns dias comigo e me terás como uma mulher comum.
- Não sei por que, estou começando a duvidar disso.
Veneranda sorriu e abaixou os olhos. Aquele gesto realmente o surpreendeu, não combinava com a mulher decidida e desenvolta que se apresentara a ele. Conversaram por mais algumas horas e Santiago jurava que haviam passado apenas alguns minutos. Ao fim desse tempo, Veneranda levantou-se e perguntou:
- Vamos andar um pouco?
Santiago concordou e saíram da cafeteria sem rumo certo. O mistério que envolvia Veneranda fazia com que ele ficasse ainda mais interessado nela. Conversaram durante toda a tarde, e ele começou a temer que aquele dia chegasse ao fim. Deixava que a moça falasse, na esperança de que se esquecesse da hora de partir. As cinco em ponto, Veneranda dirigiu-se à Santiago e propôs com a naturalidade de quem fala algo trivial:
- Por que não vamos a um hotel?
A proposta deixou Santiago um pouco confuso, mas não era homem de recusar um convite como esse.
- Claro que sim, só não acho que ficaria bem para a senhorita...
- Não se prenda a convenções agora. Por que economizar a vida? Vamos que não tenho tempo para charminhos bobos.
Aquela moça só poderia ter saído de algum sonho do qual Santiago não se lembrava. Cada palavra que saía de sua pequena boca carnuda parecia posta ali por ele próprio. Foi curioso que atendeu ao convite, mas havia uma carta insegurança em suas ações. Afinal de contas, quem seria essa desconhecida?!  Em pouco mais de meia hora de caminhada, chegaram ao hotel onde Santiago mantinha um quarto alugado. A fachada francesa e a rua vazia davam uma impressão ainda mais estranha aquele encontro, como se a qualquer momento algo surpreendente fosse acontecer. O clima de improbabilidade e mistério só fez aumentar o desejo de Santiago por conhecer melhor aquela ruiva irresponsável que fez com que ele sentisse, pela primeira vez, a pontada do amor no coração. Enquanto a moça subia as escadas segurando os sapatos e deixando à mostra os pezinhos delicados, ligados às pernas pelos tornozelos mais lindos que Santiago já havia visto, o rapaz pensava na sorte grande que o alcançara aquele dia e na sincera vontade de perpetuá-lo indefinidamente. Tinha certeza de que encontrara a mulher ideal para dividir seus planos de um futuro promissor e audacioso. Veneranda seria seu cartão de visitas para a sociedade que não o aceitava com simpatia, não por ser um novo rico, mas porque sua herança provinha de uma união condenada por todos entre sua mãe e um conhecido juiz para quem ela trabalhava.  A beleza européia daquela moça misteriosa calaria os mais ferozes críticos defensores da moral vigente. Estava decidido.
Veneranda e Santiago passaram a noite em descobertas mútuas. Realizaram todas as brincadeiras possíveis, conhecidas e inventadas, juraram amor eterno e fizeram planos para o futuro glorioso que teriam juntos. Quando o dia já amanhecia, Santiago fez o pedido de casamento que foi aceito imediatamente.
Ao deixar, porém, o hotel, homens vestidos de branco seguraram os braços da menina ainda na calçada e a empurraram para a ambulância estacionada em frente, dando-lhe injeções para que ela parasse de gritar. Santiago, em desespero, tentou livrá-la de seus sequestradores, mas foi inútil. Foi imobilizado tal qual Veneranda, mas acalmou-se antes de ser sedado e pediu explicações. Os enfermeiros informaram ao moço que ele correra grave perigo aquela noite, pois Veneranda era louca de hospício e, sempre que conseguia fugir, fazia vítimas entre os homens que atraía para o amor. Aquela revelação foi para Santiago um golpe duro demais e o rapaz caiu sentado na calçada com a mão ao peito, mas antes de desmaiar pelo medicamento recebido, Veneranda olhou para o amante relâmpago e revelou:
- Não pude te dar o mesmo fim, pois a semelhança entre nós me fez ser sincera desta vez. Acredite-me, fostes meu primeiro amor.