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sábado, 28 de janeiro de 2012

Texto de Garagem: Busílis


                                               
Caminhava lentamente pelas ruas da cidade, pés descalços, a atenção totalmente voltada para dentro. O que procurava não poderia encontrar longe de seu coração, mas precisava provocar as sensações, precisava do estímulo que não encontrava enclausurada em seu apartamento. O vento da noite não trazia nada aos seus ouvidos, nem o barulho das pessoas, nem o cheiro do caminhão de lixo passando... Nada... Nem uma palavra. “Estava perdida”, pensou, “nunca mais escreveria uma linha. Sua fama de excelente articuladora de palavras, de mestra das ideias, de conhecedora da alma humana... tudo ficaria para trás.” O que faria agora, que sua personagem já estava amalgamada em sua personalidade de uma forma tão indiscutível que não saberia viver sem ela? Estranho que o primeiro sentimento não fosse de dor, mas da raiva de ter que admitir aos críticos que eles sempre tiveram razão, que aquilo acabaria um dia. Pensou na amiga de infância que se afastou quando ela começou a fazer sucesso. Ou foi ela quem se afastou de todos? O fato é que agora se sentia como uma câmara escura e fria, uma câmara mortuária, onde nada poderia surgir, a não ser dor, espanto e tristeza. A partir de agora, perambularia pela cidade como uma pessoa comum, sem qualquer dom especial. Será que algum dia fora diferente? Ou sua arrogância a fez pensar que portava algum tipo de missão de levar ao mundo o que ele não poderia ter sem ela?! Que tola! Que menina tola e vazia! Suas palavras não passavam de um rearranjo das de outras pessoas, uma repetição de histórias que alcançaram corações mais vazios que ela. Sentiu-se o maior dos enganos, a farsa do século, e até nisso queria ser grande!
Voltou para casa com os pés imundos e a sensação de que nada a faria sentir novamente as emoções da estreia, aquela sensação maravilhosa de que algo incrível está para acontecer, de que sua vida vai mudar, de que o sonho irá se tornar realidade. O sonho aconteceu há tanto tempo que já nem se lembrava de haver sonhado, e as obrigações da nova imagem que fez de si mesma enterraram bem fundo o sabor de estar vulnerável. Olhou para o homem que dormia em sua cama, para os filhos no quarto ao lado, para todas as coisas que possuía, e sentiu-se a mais solitária de todas as mulheres. Não havia ninguém que pudesse entender o que se passava com ela. Seu sofrimento era incomunicável. Não adiantaria tentar dormir porque o sono não viria. Tomou um banho demorado e chorou todas as suas mágoas, chorou a raiva, a dor, o abandono...  Um pouco mais leve, foi até a varanda, e deixou o vento secar a água de seu corpo nu. Um homem que vasculhava o lixo parou e a observou, uma interrogação no rosto. Vestiu-se e desceu pelas escadas, sem paciência de esperar pelo elevador. O homem estava indo embora, mas ela o chamou até que ele não pudesse mais fingir que não a ouvia. Sentaram-se na calçada e conversaram até o amanhecer como dois amigos de longa data que há muito não se viam. Despediram-se depois de um café bem quente da padaria que começava sua rotina, e se foram, lados opostos. Ela entrou, pegou papel e caneta como antigamente e começou a escrever: “Nesses olhos doídos de uma vida de privações, ainda há um homem que observa...”


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A mentira.






Furtiva e perigosamente
se esconde atrás daquela
 máscara
e senta resfolegando
com enorme e falsa
 simpatia.
A escuridão em torno
de seus olhos,
brilhantes,
é maior que quase tudo
o que existe.
Dirige seus passos,
 meticulosamente,
pelos caminhos incertos
que construiu,
e rouba a sua paz
às escâncaras.
Está em suas mãos
rejeitá-la,
mas decides
acariciá-la como a um bebê
inerme.
Só não te esqueças
de que crescerá
e te engolirá
impiedosamente.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Blog Lena Mademoiselle Artesanatos












Pessoal,
esse é o blog de artesanatos da Tia Lena! Tem muita coisa linda para festas e ainda vamos postar muito mais!!!
Aproveitem!!!
http://lenamademoiselleartes.blogspot.com/

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A distância intransponível do destino



A menina Ametista mal havia completado quatorze anos quando foi dada em casamento pelo pai a um homem quinze anos mais velho. Dr. Amaranto praticamente vendeu a filha a um velho conhecido, evitando, assim, perder a fazenda que pertencia à família há mais de cinco gerações.
Mariano Lorenzo, ao contrário do que pensavam as más línguas da cidade pretendia casar-se com Ametista porque não suportava injustiças, e teve pena de ver a moça ser negociada pelos armazéns da cidade como um carregamento de café. Além do mais, estava mesmo procurando uma esposa e decidiu que seria Ametista. Assim, estava fazendo o bem a muitas pessoas com uma mesma atitude: Dr. Amaranto teria o dinheiro que precisava, Ametista estaria protegida e ele teria uma companhia em casa. Dr. Amaranto marcou um jantar para que os noivos se conhecessem e Mariano soube, no exato momento que pos os olhos em Ametista, que a amaria para o resto de sua vida.   
Casaram-se depois de três meses, em cerimônia íntima, a qual só compareceram os familiares. A noiva, totalmente ignorante dos planos de seu futuro marido, não parava de chorar. Trazia uma bonequinha de pano no lugar do buquê, entregou-a a irmã ao fim da cerimônia e aconselhou-a a fugir do pai enquanto se abraçavam.
Antes de se recolher ao seu quarto de esposa, Dr. Amaranto levou-a a um canto e disse:
- Não negues nada a teu marido porque não aceito devoluções. Sua tia já lhe contou tudo o que precisas saber para agradares a teu homem?
- Ceio que sim, papai.
- Pois bem, não me envergonhes e seja uma boa menina. Ele agora é o seu dono, e a família dele, sua família.
Ao entrar no quarto, pensou em jogar-se da janela, mas calculou que a altura não a mataria e também tinha medo de ir para o inferno. Vestiu a camisolinha branca que a esperava pendurada no cabideiro e aguardou pelo homem que não conhecia direito, mas já odiava. Quando Mariano apareceu, sentiu que não precisava ter medo, e resolveu enfrentar seu destino com dignidade. Esticou-se na cama de casal e levantou a camisola até a cintura; virou o rostinho para o lado e esperou sobreviver àquela noite. Mas o marido lhe baixou a camisola, pediu que se sentasse e disse:
- Ametista, o que vou lhe dizer, talvez não compreendas agora, mas gostaria que ouvisse com atenção. Desde que te vi na casa de teu pai meu coração não mora mais em mim. Amei-te sim, e justamente por isso seria incapaz de lhe fazer qualquer mal. Tenho meu orgulho e não quero obrigar minha própria mulher a me amar, muito menos a me suportar por medo. Por isso, gostaria de lhe fazer uma proposta vantajosa para nós dois. Preciso de alguém que cuide da casa para mim. Como sabe, fiquei viúvo do primeiro casamento quando minha esposa morreu no parto. Desde então, minha mãe cuida de meu menino, mas ela já é velha e não durará para sempre. Preciso de uma mulher que me ajude e me faça companhia. Por outro lado, você estava numa situação delicada. Prometo não te tocar até que você esteja pronta. Só o que peço é que sejamos amigos e cuidemos um do outro. Tem minha palavra de que eu libero você de seu compromisso se completar a maioridade e não quiser mais viver ao meu lado.
Estava claro no rosto da menina que ela havia sido pega de surpresa.
- Não sei o que dizer...  Estava pronta para tudo, menos para isso. Também não tenho opção, certo?  Se bem entendi, ou aceito sua proposta, que é bem melhor do que pensei que fosse me acontecer hoje, ou volto para o meu pai e corro o risco de parar nas mãos de um homem muito menos misericordioso.
- Eu não te devolveria. Você pode ficar de qualquer jeito, mas estou sendo sincero e abrindo meu coração. Sei que é uma moça sensata, não acha justo que sejamos amigos?
- Claro. Mas, se não for pedir muito, gostaria que minha irmã fosse poupada de ter um destino incerto nas mãos despreparadas de meu pai. Se você pudesse falar com ele...
- Não se preocupe. Paguei o preço pelas duas e seu pai se comprometeu comigo, mediante uma quantia razoável, de que sua irmã só se casaria quando, e se decidir, e com quem escolher.
- Vejo que o que sentes é sincero e forte. Aceito sua proposta, mas receio que não possa garantir que vá me apaixonar e chegar a amá-lo.
- Isso é comigo. Não tenho pressa. Só te peço, por enquanto, que me ajudes com a casa. O resto a gente vê depois.
- Está bem. Cuidar de uma casa eu sei.
Ametista estendeu a mãozinha a Mariano e ambos selaram o acordo com um brinde de água. Ele deitou-se no sofá de frente para a cama, e ela sumiu entre os travesseiros do leito conjugal.
Os dois tornaram-se os melhores amigos, e viviam um para o outro tão dedicadamente, que não havia quem pudesse duvidar que não fossem apaixonados. Ametista cuidava da casa com a firmeza de uma velha senhora, Mariano andava mais bem vestido, estava mais disposto no trabalho e até engordara um pouco. Depois de algum tempo, Ametista mandou que trouxessem sua sogra e o enteado para que vivessem todos juntos, e a felicidade de Mariano não poderia ser maior.
Os anos passaram e a família se manteve em harmonia, mas Ametista sentia-se pressionada com a chegada de seus vinte e um anos. Ela sofria por constatar que, mesmo que o marido fosse o melhor dos homens e que sua vida fosse desejável até para a mais desalmada das mulheres, não havia se apaixonado por Mariano. Há dois anos sua irmã caçula encontrou o amor e casou-se. Ouviu seus relatos de paixão angustiada, de sensações de morte a cada correspondência trocada com o noivo, acompanhou as providências para o casamento e esteve com a irmã até o momento de entregá-la ao marido. Depois que o jovem casal voltou de lua-de-mel, instalou-se numa casa espaçosa e romântica na vizinhança e, todas as vezes que as irmãs se visitavam Ametista percebia que nunca havia tratado o marido com tantos carinhos, e que havia entre eles certo constrangimento até quanto a questões sentimentais. Isso a fez concluir que nunca se apaixonou, mesmo que Mariano merecesse mais que todos ser amado, ela não enlouquecia na sua presença. Antes, entre eles se formou uma sólida amizade, e sabiam ler os pensamentos um do outro com tanta eficácia que quase não precisavam se falar. Riam juntos e se divertiam bastante na companhia um do outro, porque suas almas se agradavam das mesmas distrações e passatempos. Quem os conhecia na intimidade do lar, julgava ser impossível que duas pessoas buscassem tanto o bem-estar uma da outra como no caso deles. Ametista, porém, não enxergava essa cumplicidade como amor, entendia que só poderia ser gratidão e carinho o que a ligava a Mariano, e ele não merecia tão pouco.
Quando completou vinte e um anos, Ametista ganhou um apartamento na cidade e a mais espetacular festa de aniversário. Era, ao mesmo tempo, uma comemoração e uma despedida. Separaram-se dois meses depois, ainda unidos pela amizade e algumas formalidades jurídicas.
Acontece que nem sempre sabemos identificar nossos sentimentos e, na solidão da vida de descasada, Ametista compreendeu que não era apenas amizade o que sentia por Mariano. É bem verdade que não estremecia ao seu toque, nem sua cabeça girava ao som de sua voz, mas longe dele sentiu-se incompleta e vazia. Seus dias arrastavam-se sem sentido e acordava à noite com angústias de não poder ver o marido nunca mais. Antes que completasse um mês longe da família que aprendera a amar, reuniu toda a coragem que tinha e resolveu voltar à fazenda e declarar todo o sentimento recém descoberto. Queria viver com ele até o fim de sua vida, feliz e cheia de filhos.
A viagem de volta durou quase um dia inteiro por culpa das chuvas de verão que castigavam a região todos os anos, provocando enchentes e desmanchando o barro das estradas. Para não atolar, o motorista teve que parar várias vezes e esperar que estiasse um pouco. À medida que se aproximava, o coração de Ametista batia mais forte. Pensava nos anos que passou ao lado de Mariano, nas vezes todas que riram juntos, e em outras que choraram juntos também. Como naquela vez que ele perdeu toda a safra de café por causa dos vendavais que atingiram a cidade fazendo os rios subirem e alagando tudo na região, como esse que contemplava da janela do ônibus. Estiveram juntos por tanto tempo e com tanta liberdade, que não havia percebido o momento exato que se permitiu amar, apesar de ter jurado para si quando menina jamais pertencer a homem algum. Agora, pelo contrário, sentia que pertencia a Mariano e só a ele, e que nenhum outro poderia ter morada em seu coração.
Estava tão distraída em seus pensamentos, que não percebeu o alvoroço instalado na frente da casa principal quando o ônibus parou na entrada da fazenda. Só depois de ter se aproximado o suficiente para ouvir os comentários foi que notou que alguma coisa estava muito errada. Ao mesmo tempo em que precisava saber do que se tratava, teve medo. Uma certeza invadiu seu coração e soube que toda aquela agitação estava relacionada a Mariano. Teve vontade de chorar, mas se conteve. Subiu as escadas da varanda de dois em dois degraus, e atravessou a sala com a rapidez de um pensamento, parando abruptamente quando viu a sogra sair do quarto do filho, a expressão de quem viu um fantasma ou coisa pior. Ao cruzarem os olhos, correram para os braços uma da outra, e dona Hildebranda contou tudo a Ametista:
- Minha filha, que tristeza! Hoje cedo... Estava tudo tão bem... Exceto pelo fato de estarmos com saudades de você, claro. Mariano sofria muito com sua ausência. Desculpe-me, mas é a verdade.
- Imagine dona Hildebranda! Não há o que se desculpar. Ter partido foi mesmo uma bobagem. Mas diga-me, o que houve?
- Pois é... Ele estava trabalhando como sempre e parou para almoçar mais tarde porque precisava terminar todo o trabalho antes da chuva cair. Deitou-se depois do almoço nas espreguiçadeiras da varanda e, não tinha dez minutos que fechara os olhos, escutou os gritos dos rapazes por causa de um cavalo que fugiu para a estrada. Mandou que Vicente corresse para a curva para sinalizar enquanto ele puxava o bicho, mas um ônibus vinha em sentido contrário, com a visão prejudicada pela chuva que começava a cair, e não viu meu menino. Passou a noite em agonia, e o doutor garantiu que não terá outra.
Ametista não sabia o que dizer, ficou olhando o rosto daquela senhora sentada a sua frente. Queria abraçá-la, confortá-la, mas não tinha forças. Talvez, nesse exato momento, o homem que a amou mais que tudo, e que ela descobriu amar também, estivesse partindo sem ter ouvido dela uma única vez as palavras mais verdadeiras que decidira falar em sua vida. E tudo isso porque deixara o tempo passar demais. Tantas oportunidades perdidas, tanto amor recusado, tanto desejo contido...
- Dona Hildebranda, posso vê-lo?
- Claro que sim, querida. Sinto dizer que ele está inconsciente, mas vá.
Ametista entrou no quarto e a imagem que viu ficou marcada em sua memória até a noite de sua morte, sessenta e quatro anos depois, no mesmo quarto, sobre a mesma cama. Aproximou-se do marido e, devagar, segurou suas mãos. Declarou todo o amor que sentia por ele, sentada na cama ao seu lado, pediu desculpas pelo atraso das palavras e jurou cuidar de sua família até o último de seus dias, casta, e que assim encontraria com ele na eternidade.
Uma lágrima correu pelo rosto de Mariano, e Ametista entendeu que ele havia concordado com sua decisão.
    
  



terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Continho de Carnaval






Quando saía de casa naquela manhã efervescente e inatacável, Geórgia pensou aliviada no quanto estava feliz em poder fugir daquilo tudo. Aquilo? O carnaval carioca! Era ela avessa a tudo o que representasse aquele dia. A música ritmada pela percussão enérgica, o movimento urgente das pessoas pelas ruas, as notícias de jornal girando em torno do evento, a vizinha costureira fazendo plantões para dar conta das encomendas... Tudo o que a fizesse lembrar-se daqueles dias enlouquecedores. Então ela simplesmente decidiu, há muitos anos, alugar uma casinha numa dessas cidades de interior onde até o tempo esqueceu-se de passar; e corria para lá tão logo os primeiros sinais de ebulição carnavalesca começassem a aparecer.
Obviamente esse ano não seria diferente, e Geórgia saía aliviada de casa rumo a seu retiro anual com uma pequena bagagem de mão e um livro cuidadosamente escolhido para a ocasião. Ao tentar fechar a porta, porém, quebrou a chave na fechadura e seus planos tomaram um rumo diferente.
- Mas que droga! – deixou sair em voz alta, como se a chave tivesse feito de propósito – e agora?!
Procurou seu celular na bolsa e ligou para um chaveiro.
- ...E vai demorar? Sei, sei, tente ser o mais rápido possível, ainda preciso pegar a estrada. Certo. Estou aguardando.
Esperou por quarenta minutos pelo chaveiro que a seguradora prometeu mandar em vinte. Finalmente, viu o carro com o slogan da empresa parando em frente ao jardim.
- Dona Geórgia é a senhora?
- Sou eu sim...
- Desculpe-me a demora. É o trânsito, está uma loucura hoje. Meu nome é Fred. Vamos dar uma olhada nessa fechadura...
- Você acha que vai demorar? – perguntou Geórgia.
- Não senhora, uns vinte minutos...
- É eu sei, já ouvi isso antes.
Geórgia puxou uma das espreguiçadeiras da varanda, depositou a bolsa na mesinha e recomeçou a leitura que havia parado na noite anterior ao escolher o livro.
- Pronto! – disse Fred depois de alguns minutos – sua fechadura está novinha em folha! O Livro da Solidão, de Cecília?! Excelente escolha!
- É, você conhece?!
- Sim, conheço. Você falou como se não fosse possível...
- Desculpe-me, não foi minha intenção te ofender. Eu e meu jeitinho especial com as pessoas! Vamos fazer o seguinte: você aceita um café como pedido de desculpas e me diz o que achou do livro.
- Ah, eu vou aceitar sim! Nunca rejeito um café fresquinho e uma conversa boa.
- Concordo, como é mesmo o seu nome?
- Frederico, mas pode me chamar de Fred.
Geórgia entrou em casa completamente esquecida da casinha no interior e da estrada que ainda teria que enfrentar, colocou água no fogo e, enquanto fazia o café teve uma das conversas mais interessantes de sua vidinha solitária e presunçosa. Ao fim de três ou quatro xícaras, despediu-se de Fred com a sensação de que aquele momento poderia ter durado a vida inteira que ela nem perceberia. Desistiu de viajar naquele dia, e aproveitou a tarde ociosa para terminar o livro. Seu pensamento não abandonava o café literário que tivera e o coração batia ansiosamente. À noite, depois de um banho revigorante e um sanduíche improvisado preparou-se para dormir, mas a campainha tocou e ela foi atender à porta apreensiva. Não era de receber visitas, principalmente em um dia que não deveria estar em casa. Entreabriu a porta da sala tomando o cuidado de não retirar a corrente de segurança.



Do outro lado, uma máscara de clóvis apareceu acompanhada de uma risada aterrorizante. Geórgia congelou por alguns segundos, e quando o pensamento de que deveria fechar a porta chegou as suas mãos, a criatura tirou a máscara e Fred apareceu debaixo daquela personagem assustadora do carnaval.
- Que susto você me deu! - Geórgia falou, ainda com a voz trêmula - Que faz aqui?!
- Desculpe-me! Queria ser engraçado, acho que não consegui.
- Não mesmo! Você me assustou de verdade.
- Sinto muito, agora é minha vez de te oferecer alguma coisa para comer como um pedido de desculpas. O que acha?
- Olha... acabei de fazer um lanche...
- Sei que vacilei na brincadeira, mas não consegui esquecer nossa conversa. É tão difícil conhecer uma pessoa interessante e...
- Calma! Você nem me deixou terminar. Como eu estava dizendo... acabei de lanchar, mas aceito dar uma volta para continuar aquela conversa de mais cedo.
- Ótimo! Quer dizer... por um segundo eu pensei...
- Tudo bem, eu entendi. Vou vestir um jeans e volto em um instante. Se incomoda em esperar aí fora? Não acho prudente abrir minha porta a essa hora para um homem mascarado. Eu assisto a filmes de terror.
- Aqui está ótimo. Sei que mereço depois do susto que te dei.

Geórgia subiu e vestiu as primeiras roupas que encontrou. Ao bater a porta de casa pensou em como eram estranhas suas últimas ações. Isso tudo não combinava com ela. Estava sendo irresponsável, no mínimo, mas alguma coisa naquele rapaz a atraía cegamente. Sentia que não poderia resistir, mesmo que fosse sofrer mais tarde. De uma maneira irracional, preferia arriscar. A noite estava muito agradável, mas o sentimento de que havia alguma coisa fora do lugar não a abandonava. Talvez fosse ela mesma, a deslocada, que não se divertia há tantos anos que já achava tudo muito estranho. Frederico era a melhor das companhias! Caminharam pelo centro quase vazio, por foliões desgarrados de seus blocos sentados ao lado de garrafas vazias ou fazendo um amor urgente nas sombras da noite escura, passaram ao lado de trabalhadoras noturnas que ofereceram amor para defender o do dia. "Atendemos aos dois pelo preço de um! - elas diziam - Promoção de Carnaval! Fred e Geórgia continuaram sua caminhada alheios a tudo o que os rodeava. Falaram do que liam, dos filmes que viam e dos lugares que conheceram, até que chegaram as suas vidas e abriram seus corações. Geórgia sentiu a pontada do amor tentando abrir espaço entre suas costelas até alcançar seu coração miudinho, atrofiado pelo tempo sem uso, esquecido entre os outros órgãos e, por um segundo parecia que o carnaval morava em seu peito. Que alegria! Que nostalgia! Que barulho ensurdecedor! Olhou em volta e pensou no quanto era insignificante e curta a vida do solitário. Viu que tudo tomava proporções infinitas e sofreu, ma o que é um grande amor sem algumas incertezas? Tirou as travas que ainda a mantinham no chão e entregou-se completa e irremediavelmente. Contrariando todas as escolhas que havia feito na vida, levou Fred até sua casa e abandonou as palavras para falar a língua dos amantes desesperados.

Ao amanhecer, porém, não encontrou o rapaz ao seu lado na cama e um medo terrível lhe invadiu a alma e congelou seu sangue. Olhou em volta a procura de sua bolsa, televisão, computador, e todas as coisinhas que comprou com tanto sacrifício ao longo de sua vidinha medíocre. As chaves! As chaves do carro! Sabia onde exatamente havia posto e não estava lá. Olhou na garagem e o carro havia sumido! "O carro que ainda estou pagando! Como pude ser tão idiota!" Não pensou duas vezes e ligou para a polícia."Como assim vão demorar?" Indignada, resolveu cobrar uma atitude do dono da seguradora, que empregou aquele vagabundo e a expôs ao perigo.
- Senhora, deve estar havendo algum engano, Frederico é um rapaz tranquilo e muito honesto. De qualquer forma nos comprometemos a verificar essa história e tomar uma atitude enérgica.

Isso não poderia ser relevado. Afinal, ele se aproveitou de sua carência, de sua fragilidade. Enquanto andava de um lado para o outro pensando no que fazer ouviu o barulho de seu carro e abriu a porta em desespero. Fred abriu a porta com um largo sorriso:

- Bom dia gata! Fui ao mercado comprar as coisas para o nosso café. Gosta de panquecas? O que foi? Que cara é essa? Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora?
- Aconteceu. - ela sussurrou quase sem forças.
- E o que foi? Você está me deixando preocupado.
- Eu acabei com nosso amor...

Ao longe, a sirene da polícia indicava que o dia não seria nada agradável.





domingo, 15 de janeiro de 2012

O tamanho da minha ignorância




Ignoro muitas coisas.
Um poeta em Uganda,
um assassino há quinze metros,
a dor de passar fome,
o que é perder tudo,
o dinheiro sobrando,
um riacho na Austrália,
a paixão que não acaba,
o calor do Saara,
quantos sóis tem na galáxia
que ainda não foi descoberta.
Há coisas que ignoro
inclusive para imaginar
que existam;
mas o que não ignoro
( e que até gostaria),
é o quanto a humanidade
pode desmerecer esse nome.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Lílian, a carta e a pedra marcada - Indrodução:

Não sei quanto tempo fiquei parada, braços cruzados, pernas levemente afastadas. Poderia ter sido um minuto ou uma hora, estava tão mergulhada em meus pensamentos que não vi o tempo passar; só sentia a brisa fresca do mar batendo em meu rosto, embolando as pontas dos meus cabelos. Sempre que me sinto angustiada ou quando estou triste, ou simplesmente quando não posso fugir de tomar uma decisão venho ao Campo dos Refugiados – o nome não poderia ser mais apropriado – e me esvazio de tudo para me ocupar apenas do que é essencial no momento. Olho para as ondas batendo nas pedras, a espuma desaparecendo em segundos, fecho os olhos e me concentro no som que vem delas. É impressionante constatar o quanto o mar me acalma. Sinto tanta segurança no barulho das águas se movendo que não consigo resistir e chego mais para a ponta das pedras, ouço uma voz me chamar atrás de mim, mas antes que pudesse discernir seu rosto sou puxada violentamente para o mar. Tento me segurar, mas só o que consigo é deixar as marcas dos meus dedos no limo sobre as pedras. É inevitável que eu afunde então me lembro que a maneira mais rápida de uma pessoa se afogar é entrando em desespero. Deixo a corrente me levar até a força que me empurra para o fundo diminuir, a claridade do sol denuncia onde fica a superfície e uso toda a energia que me resta para nadar em sua direção. Para minha surpresa, uma camada espessa de vidro transparente impede minha passagem. Procuro uma saída, mas o mar está todo coberto de vidro. Desesperada, na certeza de que não tenho mais saída, começo a me debater e engolir água, aquela água salgada entra por minha boca e nariz como se fosse fogo, ardendo e arranhando tudo por onde passa. Em questão de segundos sinto que estou perdendo os sentidos, mas algo dentro de mim insiste em lutar. Olho para o alto como última tentativa de sobrevivência, dando murros contra o vidro para chamar a atenção da única pessoa parada nas pedras, no exato lugar de onde caí. Ela vira o rosto na minha direção, impassível, e só então me dou conta de que a pessoa sou eu.
Acordei assustada, o corpo embebido em suor, já é de manhã e parece que dormi durante meia hora no máximo, meu corpo precisa descansar, mas minha cabeça não relaxa. Há meses venho sofrendo de insônia e tendo esse mesmo sonho de que estou me afogando e não tenho escapatória, desde que recebi a notícia de que minha vida mudaria drasticamente pela segunda vez. A primeira foi há muitos anos, quando eu era apenas uma garotinha...



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