Quando saía
de casa naquela manhã efervescente e inatacável, Geórgia pensou aliviada no
quanto estava feliz em poder fugir daquilo tudo. Aquilo? O carnaval carioca!
Era ela avessa a tudo o que representasse aquele dia. A música ritmada pela
percussão enérgica, o movimento urgente das pessoas pelas ruas, as notícias de
jornal girando em torno do evento, a vizinha costureira fazendo plantões para
dar conta das encomendas... Tudo o que a fizesse lembrar-se daqueles dias
enlouquecedores. Então ela simplesmente decidiu, há muitos anos, alugar uma
casinha numa dessas cidades de interior onde até o tempo esqueceu-se de passar;
e corria para lá tão logo os primeiros sinais de ebulição carnavalesca
começassem a aparecer.
Obviamente
esse ano não seria diferente, e Geórgia saía aliviada de casa rumo a seu retiro
anual com uma pequena bagagem de mão e um livro cuidadosamente escolhido para a
ocasião. Ao tentar fechar a porta, porém, quebrou a chave na fechadura e seus
planos tomaram um rumo diferente.
- Mas que
droga! – deixou sair em voz alta, como se a chave tivesse feito de propósito –
e agora?!
Procurou seu
celular na bolsa e ligou para um chaveiro.
- ...E vai
demorar? Sei, sei, tente ser o mais rápido possível, ainda preciso pegar a
estrada. Certo. Estou aguardando.
Esperou por quarenta minutos pelo chaveiro que a seguradora prometeu mandar em vinte. Finalmente,
viu o carro com o slogan da empresa parando em frente ao jardim.
- Dona
Geórgia é a senhora?
- Sou eu
sim...
- Desculpe-me
a demora. É o trânsito, está uma loucura hoje. Meu nome é Fred. Vamos dar uma
olhada nessa fechadura...
- Você acha
que vai demorar? – perguntou Geórgia.
- Não
senhora, uns vinte minutos...
- É eu sei,
já ouvi isso antes.
Geórgia puxou
uma das espreguiçadeiras da varanda, depositou a bolsa na mesinha e recomeçou a
leitura que havia parado na noite anterior ao escolher o livro.
- Pronto! –
disse Fred depois de alguns minutos – sua fechadura está novinha em folha! O
Livro da Solidão, de Cecília?! Excelente escolha!
- É, você
conhece?!
- Sim, conheço.
Você falou como se não fosse possível...
- Desculpe-me,
não foi minha intenção te ofender. Eu e meu jeitinho especial com as pessoas! Vamos
fazer o seguinte: você aceita um café como pedido de desculpas e me diz o que achou
do livro.
- Ah, eu vou
aceitar sim! Nunca rejeito um café fresquinho e uma conversa boa.
- Concordo,
como é mesmo o seu nome?
- Frederico,
mas pode me chamar de Fred.
Geórgia
entrou em casa completamente esquecida da casinha no interior e da estrada que
ainda teria que enfrentar, colocou água no fogo e, enquanto fazia o café teve
uma das conversas mais interessantes de sua vidinha solitária e presunçosa. Ao
fim de três ou quatro xícaras, despediu-se de Fred com a sensação de que aquele
momento poderia ter durado a vida inteira que ela nem perceberia. Desistiu de
viajar naquele dia, e aproveitou a tarde ociosa para terminar o livro. Seu
pensamento não abandonava o café literário que tivera e o coração batia ansiosamente.
À noite, depois de um banho revigorante e um sanduíche improvisado preparou-se
para dormir, mas a campainha tocou e ela foi atender à porta apreensiva. Não
era de receber visitas, principalmente em um dia que não deveria estar em casa.
Entreabriu a porta da sala tomando o cuidado de não retirar a corrente de
segurança.
Do outro lado, uma máscara de clóvis apareceu acompanhada de uma risada aterrorizante. Geórgia congelou por alguns segundos, e quando o pensamento de que deveria fechar a porta chegou as suas mãos, a criatura tirou a máscara e Fred apareceu debaixo daquela personagem assustadora do carnaval.
Do outro lado, uma máscara de clóvis apareceu acompanhada de uma risada aterrorizante. Geórgia congelou por alguns segundos, e quando o pensamento de que deveria fechar a porta chegou as suas mãos, a criatura tirou a máscara e Fred apareceu debaixo daquela personagem assustadora do carnaval.
- Que susto você me deu! - Geórgia falou, ainda com a voz trêmula - Que faz aqui?!
- Desculpe-me! Queria ser engraçado, acho que não consegui.
- Não mesmo! Você me assustou de verdade.
- Sinto muito, agora é minha vez de te oferecer alguma coisa para comer como um pedido de desculpas. O que acha?
- Olha... acabei de fazer um lanche...
- Sei que vacilei na brincadeira, mas não consegui esquecer nossa conversa. É tão difícil conhecer uma pessoa interessante e...
- Calma! Você nem me deixou terminar. Como eu estava dizendo... acabei de lanchar, mas aceito dar uma volta para continuar aquela conversa de mais cedo.
- Ótimo! Quer dizer... por um segundo eu pensei...
- Tudo bem, eu entendi. Vou vestir um jeans e volto em um instante. Se incomoda em esperar aí fora? Não acho prudente abrir minha porta a essa hora para um homem mascarado. Eu assisto a filmes de terror.
- Aqui está ótimo. Sei que mereço depois do susto que te dei.
Geórgia subiu e vestiu as primeiras roupas que encontrou. Ao bater a porta de casa pensou em como eram estranhas suas últimas ações. Isso tudo não combinava com ela. Estava sendo irresponsável, no mínimo, mas alguma coisa naquele rapaz a atraía cegamente. Sentia que não poderia resistir, mesmo que fosse sofrer mais tarde. De uma maneira irracional, preferia arriscar. A noite estava muito agradável, mas o sentimento de que havia alguma coisa fora do lugar não a abandonava. Talvez fosse ela mesma, a deslocada, que não se divertia há tantos anos que já achava tudo muito estranho. Frederico era a melhor das companhias! Caminharam pelo centro quase vazio, por foliões desgarrados de seus blocos sentados ao lado de garrafas vazias ou fazendo um amor urgente nas sombras da noite escura, passaram ao lado de trabalhadoras noturnas que ofereceram amor para defender o do dia. "Atendemos aos dois pelo preço de um! - elas diziam - Promoção de Carnaval! Fred e Geórgia continuaram sua caminhada alheios a tudo o que os rodeava. Falaram do que liam, dos filmes que viam e dos lugares que conheceram, até que chegaram as suas vidas e abriram seus corações. Geórgia sentiu a pontada do amor tentando abrir espaço entre suas costelas até alcançar seu coração miudinho, atrofiado pelo tempo sem uso, esquecido entre os outros órgãos e, por um segundo parecia que o carnaval morava em seu peito. Que alegria! Que nostalgia! Que barulho ensurdecedor! Olhou em volta e pensou no quanto era insignificante e curta a vida do solitário. Viu que tudo tomava proporções infinitas e sofreu, ma o que é um grande amor sem algumas incertezas? Tirou as travas que ainda a mantinham no chão e entregou-se completa e irremediavelmente. Contrariando todas as escolhas que havia feito na vida, levou Fred até sua casa e abandonou as palavras para falar a língua dos amantes desesperados.
Ao amanhecer, porém, não encontrou o rapaz ao seu lado na cama e um medo terrível lhe invadiu a alma e congelou seu sangue. Olhou em volta a procura de sua bolsa, televisão, computador, e todas as coisinhas que comprou com tanto sacrifício ao longo de sua vidinha medíocre. As chaves! As chaves do carro! Sabia onde exatamente havia posto e não estava lá. Olhou na garagem e o carro havia sumido! "O carro que ainda estou pagando! Como pude ser tão idiota!" Não pensou duas vezes e ligou para a polícia."Como assim vão demorar?" Indignada, resolveu cobrar uma atitude do dono da seguradora, que empregou aquele vagabundo e a expôs ao perigo.
- Senhora, deve estar havendo algum engano, Frederico é um rapaz tranquilo e muito honesto. De qualquer forma nos comprometemos a verificar essa história e tomar uma atitude enérgica.
Isso não poderia ser relevado. Afinal, ele se aproveitou de sua carência, de sua fragilidade. Enquanto andava de um lado para o outro pensando no que fazer ouviu o barulho de seu carro e abriu a porta em desespero. Fred abriu a porta com um largo sorriso:
- Bom dia gata! Fui ao mercado comprar as coisas para o nosso café. Gosta de panquecas? O que foi? Que cara é essa? Aconteceu alguma coisa enquanto eu estava fora?
- Aconteceu. - ela sussurrou quase sem forças.
- E o que foi? Você está me deixando preocupado.
- Eu acabei com nosso amor...
Ao longe, a sirene da polícia indicava que o dia não seria nada agradável.
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