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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A distância intransponível do destino



A menina Ametista mal havia completado quatorze anos quando foi dada em casamento pelo pai a um homem quinze anos mais velho. Dr. Amaranto praticamente vendeu a filha a um velho conhecido, evitando, assim, perder a fazenda que pertencia à família há mais de cinco gerações.
Mariano Lorenzo, ao contrário do que pensavam as más línguas da cidade pretendia casar-se com Ametista porque não suportava injustiças, e teve pena de ver a moça ser negociada pelos armazéns da cidade como um carregamento de café. Além do mais, estava mesmo procurando uma esposa e decidiu que seria Ametista. Assim, estava fazendo o bem a muitas pessoas com uma mesma atitude: Dr. Amaranto teria o dinheiro que precisava, Ametista estaria protegida e ele teria uma companhia em casa. Dr. Amaranto marcou um jantar para que os noivos se conhecessem e Mariano soube, no exato momento que pos os olhos em Ametista, que a amaria para o resto de sua vida.   
Casaram-se depois de três meses, em cerimônia íntima, a qual só compareceram os familiares. A noiva, totalmente ignorante dos planos de seu futuro marido, não parava de chorar. Trazia uma bonequinha de pano no lugar do buquê, entregou-a a irmã ao fim da cerimônia e aconselhou-a a fugir do pai enquanto se abraçavam.
Antes de se recolher ao seu quarto de esposa, Dr. Amaranto levou-a a um canto e disse:
- Não negues nada a teu marido porque não aceito devoluções. Sua tia já lhe contou tudo o que precisas saber para agradares a teu homem?
- Ceio que sim, papai.
- Pois bem, não me envergonhes e seja uma boa menina. Ele agora é o seu dono, e a família dele, sua família.
Ao entrar no quarto, pensou em jogar-se da janela, mas calculou que a altura não a mataria e também tinha medo de ir para o inferno. Vestiu a camisolinha branca que a esperava pendurada no cabideiro e aguardou pelo homem que não conhecia direito, mas já odiava. Quando Mariano apareceu, sentiu que não precisava ter medo, e resolveu enfrentar seu destino com dignidade. Esticou-se na cama de casal e levantou a camisola até a cintura; virou o rostinho para o lado e esperou sobreviver àquela noite. Mas o marido lhe baixou a camisola, pediu que se sentasse e disse:
- Ametista, o que vou lhe dizer, talvez não compreendas agora, mas gostaria que ouvisse com atenção. Desde que te vi na casa de teu pai meu coração não mora mais em mim. Amei-te sim, e justamente por isso seria incapaz de lhe fazer qualquer mal. Tenho meu orgulho e não quero obrigar minha própria mulher a me amar, muito menos a me suportar por medo. Por isso, gostaria de lhe fazer uma proposta vantajosa para nós dois. Preciso de alguém que cuide da casa para mim. Como sabe, fiquei viúvo do primeiro casamento quando minha esposa morreu no parto. Desde então, minha mãe cuida de meu menino, mas ela já é velha e não durará para sempre. Preciso de uma mulher que me ajude e me faça companhia. Por outro lado, você estava numa situação delicada. Prometo não te tocar até que você esteja pronta. Só o que peço é que sejamos amigos e cuidemos um do outro. Tem minha palavra de que eu libero você de seu compromisso se completar a maioridade e não quiser mais viver ao meu lado.
Estava claro no rosto da menina que ela havia sido pega de surpresa.
- Não sei o que dizer...  Estava pronta para tudo, menos para isso. Também não tenho opção, certo?  Se bem entendi, ou aceito sua proposta, que é bem melhor do que pensei que fosse me acontecer hoje, ou volto para o meu pai e corro o risco de parar nas mãos de um homem muito menos misericordioso.
- Eu não te devolveria. Você pode ficar de qualquer jeito, mas estou sendo sincero e abrindo meu coração. Sei que é uma moça sensata, não acha justo que sejamos amigos?
- Claro. Mas, se não for pedir muito, gostaria que minha irmã fosse poupada de ter um destino incerto nas mãos despreparadas de meu pai. Se você pudesse falar com ele...
- Não se preocupe. Paguei o preço pelas duas e seu pai se comprometeu comigo, mediante uma quantia razoável, de que sua irmã só se casaria quando, e se decidir, e com quem escolher.
- Vejo que o que sentes é sincero e forte. Aceito sua proposta, mas receio que não possa garantir que vá me apaixonar e chegar a amá-lo.
- Isso é comigo. Não tenho pressa. Só te peço, por enquanto, que me ajudes com a casa. O resto a gente vê depois.
- Está bem. Cuidar de uma casa eu sei.
Ametista estendeu a mãozinha a Mariano e ambos selaram o acordo com um brinde de água. Ele deitou-se no sofá de frente para a cama, e ela sumiu entre os travesseiros do leito conjugal.
Os dois tornaram-se os melhores amigos, e viviam um para o outro tão dedicadamente, que não havia quem pudesse duvidar que não fossem apaixonados. Ametista cuidava da casa com a firmeza de uma velha senhora, Mariano andava mais bem vestido, estava mais disposto no trabalho e até engordara um pouco. Depois de algum tempo, Ametista mandou que trouxessem sua sogra e o enteado para que vivessem todos juntos, e a felicidade de Mariano não poderia ser maior.
Os anos passaram e a família se manteve em harmonia, mas Ametista sentia-se pressionada com a chegada de seus vinte e um anos. Ela sofria por constatar que, mesmo que o marido fosse o melhor dos homens e que sua vida fosse desejável até para a mais desalmada das mulheres, não havia se apaixonado por Mariano. Há dois anos sua irmã caçula encontrou o amor e casou-se. Ouviu seus relatos de paixão angustiada, de sensações de morte a cada correspondência trocada com o noivo, acompanhou as providências para o casamento e esteve com a irmã até o momento de entregá-la ao marido. Depois que o jovem casal voltou de lua-de-mel, instalou-se numa casa espaçosa e romântica na vizinhança e, todas as vezes que as irmãs se visitavam Ametista percebia que nunca havia tratado o marido com tantos carinhos, e que havia entre eles certo constrangimento até quanto a questões sentimentais. Isso a fez concluir que nunca se apaixonou, mesmo que Mariano merecesse mais que todos ser amado, ela não enlouquecia na sua presença. Antes, entre eles se formou uma sólida amizade, e sabiam ler os pensamentos um do outro com tanta eficácia que quase não precisavam se falar. Riam juntos e se divertiam bastante na companhia um do outro, porque suas almas se agradavam das mesmas distrações e passatempos. Quem os conhecia na intimidade do lar, julgava ser impossível que duas pessoas buscassem tanto o bem-estar uma da outra como no caso deles. Ametista, porém, não enxergava essa cumplicidade como amor, entendia que só poderia ser gratidão e carinho o que a ligava a Mariano, e ele não merecia tão pouco.
Quando completou vinte e um anos, Ametista ganhou um apartamento na cidade e a mais espetacular festa de aniversário. Era, ao mesmo tempo, uma comemoração e uma despedida. Separaram-se dois meses depois, ainda unidos pela amizade e algumas formalidades jurídicas.
Acontece que nem sempre sabemos identificar nossos sentimentos e, na solidão da vida de descasada, Ametista compreendeu que não era apenas amizade o que sentia por Mariano. É bem verdade que não estremecia ao seu toque, nem sua cabeça girava ao som de sua voz, mas longe dele sentiu-se incompleta e vazia. Seus dias arrastavam-se sem sentido e acordava à noite com angústias de não poder ver o marido nunca mais. Antes que completasse um mês longe da família que aprendera a amar, reuniu toda a coragem que tinha e resolveu voltar à fazenda e declarar todo o sentimento recém descoberto. Queria viver com ele até o fim de sua vida, feliz e cheia de filhos.
A viagem de volta durou quase um dia inteiro por culpa das chuvas de verão que castigavam a região todos os anos, provocando enchentes e desmanchando o barro das estradas. Para não atolar, o motorista teve que parar várias vezes e esperar que estiasse um pouco. À medida que se aproximava, o coração de Ametista batia mais forte. Pensava nos anos que passou ao lado de Mariano, nas vezes todas que riram juntos, e em outras que choraram juntos também. Como naquela vez que ele perdeu toda a safra de café por causa dos vendavais que atingiram a cidade fazendo os rios subirem e alagando tudo na região, como esse que contemplava da janela do ônibus. Estiveram juntos por tanto tempo e com tanta liberdade, que não havia percebido o momento exato que se permitiu amar, apesar de ter jurado para si quando menina jamais pertencer a homem algum. Agora, pelo contrário, sentia que pertencia a Mariano e só a ele, e que nenhum outro poderia ter morada em seu coração.
Estava tão distraída em seus pensamentos, que não percebeu o alvoroço instalado na frente da casa principal quando o ônibus parou na entrada da fazenda. Só depois de ter se aproximado o suficiente para ouvir os comentários foi que notou que alguma coisa estava muito errada. Ao mesmo tempo em que precisava saber do que se tratava, teve medo. Uma certeza invadiu seu coração e soube que toda aquela agitação estava relacionada a Mariano. Teve vontade de chorar, mas se conteve. Subiu as escadas da varanda de dois em dois degraus, e atravessou a sala com a rapidez de um pensamento, parando abruptamente quando viu a sogra sair do quarto do filho, a expressão de quem viu um fantasma ou coisa pior. Ao cruzarem os olhos, correram para os braços uma da outra, e dona Hildebranda contou tudo a Ametista:
- Minha filha, que tristeza! Hoje cedo... Estava tudo tão bem... Exceto pelo fato de estarmos com saudades de você, claro. Mariano sofria muito com sua ausência. Desculpe-me, mas é a verdade.
- Imagine dona Hildebranda! Não há o que se desculpar. Ter partido foi mesmo uma bobagem. Mas diga-me, o que houve?
- Pois é... Ele estava trabalhando como sempre e parou para almoçar mais tarde porque precisava terminar todo o trabalho antes da chuva cair. Deitou-se depois do almoço nas espreguiçadeiras da varanda e, não tinha dez minutos que fechara os olhos, escutou os gritos dos rapazes por causa de um cavalo que fugiu para a estrada. Mandou que Vicente corresse para a curva para sinalizar enquanto ele puxava o bicho, mas um ônibus vinha em sentido contrário, com a visão prejudicada pela chuva que começava a cair, e não viu meu menino. Passou a noite em agonia, e o doutor garantiu que não terá outra.
Ametista não sabia o que dizer, ficou olhando o rosto daquela senhora sentada a sua frente. Queria abraçá-la, confortá-la, mas não tinha forças. Talvez, nesse exato momento, o homem que a amou mais que tudo, e que ela descobriu amar também, estivesse partindo sem ter ouvido dela uma única vez as palavras mais verdadeiras que decidira falar em sua vida. E tudo isso porque deixara o tempo passar demais. Tantas oportunidades perdidas, tanto amor recusado, tanto desejo contido...
- Dona Hildebranda, posso vê-lo?
- Claro que sim, querida. Sinto dizer que ele está inconsciente, mas vá.
Ametista entrou no quarto e a imagem que viu ficou marcada em sua memória até a noite de sua morte, sessenta e quatro anos depois, no mesmo quarto, sobre a mesma cama. Aproximou-se do marido e, devagar, segurou suas mãos. Declarou todo o amor que sentia por ele, sentada na cama ao seu lado, pediu desculpas pelo atraso das palavras e jurou cuidar de sua família até o último de seus dias, casta, e que assim encontraria com ele na eternidade.
Uma lágrima correu pelo rosto de Mariano, e Ametista entendeu que ele havia concordado com sua decisão.
    
  



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