Ela se chamava Luana Laurentino. Tinha quinze anos de guerra e dor. Sua primeira
recordação é de ter disputado, no lixo, um pedaço de pão com um
urubu. Devia ter uns quatro anos. Não se lembra dos seus pais, só de estradas,
abrigos e homens que roubaram sua inocência em troca de alguns centavos ou um
prato de comida.
Pois bem, um dia descobriu, meio sem
querer, que possuía um dom de convencimento fora do normal. Não lia nem
escrevia, mas as palavras em sua boca se misturavam à sua saliva e borboleteavam
pela língua até saírem numa revoada multicolorida de frases bem escolhidas que tinham um só objetivo: trazer para Luana qualquer coisa que desejasse.
Foi assim que Luana Laurentino
conseguiu um emprego num bordel de beira de estrada em uma dessas muito
pequenas e tristes cidadezinhas, onde o tempo leva uma eternidade e as pessoas
envelhecem antes da hora. Conheceu Dona Iolanda, a dona do estabelecimento, na
feira, e se ofereceu para ajudar a carregar as sacolas cheias de verduras para o
jantar de sexta-feira, que era o mais caprichado da casa de tolerância. Enquanto
caminhava ao lado da senhora de seios fartos, decote generoso e longos cabelos
pretos, falou de suas dificuldades e de como conseguiu chegar viva até ali.
À porta do bordel, recebeu a
proposta que esperava:
- Luana? É esse o seu nome,
não é?
- Sim senhora.
- Você é muito magrinha para
uma de minhas meninas, mas preciso de uma ajudante nas tarefas de casa. Por
enquanto não posso te pagar muito, mas terá comida farta e teto sobre a cabeça.
O que acha?
Não é preciso nem dizer que
Luana aceitou na hora. Entrou na casa curiosa com o silêncio das duas da tarde
e pensou que estivesse em sua imaginação: ria de como era tudo colorido, cheio
de flores e bonequinhas com cara de louça sobre almofadas de cetim. Pelas
paredes, meninas seminuas sorriam de dentro das molduras. Dona Iolanda foi lhe
apresentando os cômodos e suas funções mais rápido do que ela podia memorizar,
mas não estava preocupada com isso, comparava seu corpinho surrado e magro aos
das fotos e pensava no dia em que ela estaria ali. De repente, ouviu uma coisa
que a tirou de seus sonhos de mariposa iniciante:
- E este é o seu quarto.
- Me-me-meu quarto?! Nunca
tive um quarto só para mim!
- Não fique muito
entusiasmada. É só o lugar onde costumamos guardar os produtos de limpeza, as
vassouras... Vou colocar um colchão para você. Mas antes venha me ajudar na
cozinha porque precisamos começar a fazer o jantar.
Luana descascou batatas, cebolas e
alhos, picou legumes e verduras e lavou louças com tanta rapidez e eficiência
que dona Iolanda deu um sorrisinho com o canto da boca e sentenciou:
- Acho que você presta para
alguma coisa, menina!
Aos poucos as meninas foram
descendo e sendo apresentadas a mais nova moradora do sobrado verde de janelas
azuis, que ficava à margem oposta a das casas de respeito. Era uma confusão de
vozes e histórias e perguntas que, pela primeira vez na vida Luana
se viu rindo sem saber o motivo.
Às seis horas, todas subiram
numa fila de pezinhos descalços e apressados para descer uma hora depois
vestidas de mulher da vida, com olhos maquiados e bocas vermelhas, plumas nos
pescoços e sapatos tão altos que faziam seus joelhos tremerem ao andar.
Luana acompanhou essa rotina todos os dias em que permaneceu no bordel, e ficava escondida debaixo da escada ou atrás das cortinas, observando tudo com
olhos de esfomeada. Cada gesto, cada palavra, eram repetidos depois, quando se
trancava no seu quartinho de vassouras e vestia as roupinhas que as meninas
punham para lavar.
Desempenhava tão bem as
funções de ajudante que ganhou a confiança de Dona Iolanda e, acrescentou às
suas atribuições, pouco a pouco, as funções da proprietária do bordel. Em pouco mais de um ano, era a
ela que as meninas pediam tudo o que precisavam, ela que negociava os preços
com os feirantes e mantinha a casa em perfeito funcionamento. Dona Iolanda,
senhora de olhos experientes, viu a menina magricela se tornar uma bonita
mulher, com curvas harmoniosas, seios firmes e pequeninos com biquinhos que
apontavam para a frente como se indicassem o caminho do futuro. Luana
Laurentino não usou mal a vida mais tranquila de quem tem onde morar e comer e
aprendeu a ler, escrever e fazer contas com as meninas mais velhas da casa de
forma que desistiu de fazer a vida e abraçou a função de administradora, afirmando de
si para si que não voltaria a se deitar com quem quer que fosse sem amor.
Uma noite de muita chuva,
quando os trovões abalaram as paredes do sobrado e os homens deixaram pegadas
de lama ao pisar o chão de madeira, Chico Trinta Almas entrou pelo salão pondo
fogo pelas ventas e pediu a bebida mais forte que houvesse no bar. Tinha esse
nome porque matou trinta homens num só dia de fúria por esses terem zombado dele em
diferentes momentos de sua vida, pois só possuía um olho. O outro fora
bicado por um galo no quintal de casa quando era um molequinho de três anos.
Luana foi servir a bebida de
Chico Trinta Almas e Dona Iolanda viu quando o homem arregalou o único olho
para o corpinho da menina e a pegou pela mão:
- Suba! Essa noite vou te
mostrar o que faz um homem de verdade.
Luana lançou um olhar de
súplica para Dona Iolanda e, Anastácia, a menina ruiva, fez sinal para que
obedecesse a Chico porque senão ele mudaria o nome para Chico Trinta e Uma
Almas antes que elas dissessem “valha-me Deus!”. Não era o homem certo para se
rejeitar.
Subiram as escadas e Trinta
Almas abriu a porta de um quarto e tirou de lá, pendurado pelo pescoço, o
vereador da cidade e uma mulata que, dizem, tem o poder de amarrar a ela
qualquer homem com suas perícias de cama.
- Vão trepar noutro lugar... - ele disse - ... Que eu gostei desse aqui.
Luana olhou para aquele
homem sem um olho, de dentes amarelos e cheiro de mato e, ao invés de medo,
teve a certeza de estar vendo num espelho a mesma dor, a mesma tristeza que ela
carregava dentro de si. Chegou perto de Trinta Almas bem devagarinho e
sussurrou ao seu ouvido:
- Está tudo bem.
Tirou seu vestidinho como se
tirasse todas as mágoas da vida inteira, pegou a mão daquele infeliz à sua
frente e colocou-a em seu peito. Sentiu sua aspereza e tremeu. Trinta Almas deu
um pulo para trás, sentou na beirada da cama e fez a pergunta de costume naquelas bandas:
- Qual a sua especialidade
menina?
Luana, que já tinha visto de
quase tudo na vida mesmo com tão pouca idade, viu ali a chance de se livrar de
deitar com um homem sem desejo outra vez na vida e respondeu:
- Minha especialidade é
contar histórias.
Trinta Almas deu uma
gargalhada tão alta que espantou os trovões, fez calar os cachorros e a chuva
parou.
- Então menina, me conte uma
história. Se eu gostar, te pago com generosidade. Se não... Te carrego daqui e
vai morar comigo nos descampados e nas beiras dos rios até eu achar que é sua
hora de ver Deus.
E Luana começou a contar sua
própria história e a de quem conheceu pelo caminho até o dia amanhecer. Quando
o sol forçou entrada pelas janelas, Trinta Almas pagou e disse:
- Volto mais tarde para
ouvir o fim disso.
E assim foi durante dias,
semanas e meses. Trinta Almas vinha ver Luana Laurentino e ouvia suas histórias
vividas e inventadas como um menino desamparado até adormecer. Nunca avançou porque
não suportava interromper as histórias pelas quais passava o dia esperando
aparvalhado. Sentia que seu coração já não lhe pertencia e que sua vida não
valia nada sem aquelas noites na casa de Dona Iolanda.
Um dia Luana o recebeu como
sempre: tirou seu vestidinho e deitou ao seu lado na cama, mas já não queria
contar histórias. Queria que aquele homem de rosto encovado e cheiro de mato
possuísse seu corpinho com fúria e rasgasse sua pele com suas mãos de lobo
selvagem. Trinta Almas hesitou, mas finalmente percebeu que se pertenciam há
muito tempo, antes mesmo de se conhecerem. Beijou cada pedaço de Luana como se
fossem páginas de um livro, percorreu seus dentes com a língua como se roubasse
suas palavras e a penetrou como se pudesse entrar nas histórias e viver lá para
sempre.
Ao amanhecer, desnorteado
como um recém-nascido, virou-se para a mulher ao seu lado e perguntou:
- Que faremos agora?!
- Agora homem, viveremos nos
descampados e nas beiras dos rios até eu achar que é sua hora de ver Deus.
Muito bom. Com gosto de Brasil. Parabéns.
ResponderExcluirExiste um feitiço nessa história, e dos bons. Algo de Mil e uma noites... Os nomes são bem sugestivos. O jeito de contar é cativante. Muito bom.
ResponderExcluirObrigada, rapazes!!!
ResponderExcluirAmeii!
ResponderExcluirFiquei vidrada em quanto lia, lindo de mais
Minha querida Flávia, a forma como você descreve as suas personagens é realmente fantástica!!! Ler o seu conto foi como assistir a Luana Laurentino e a Chico Trinta Almas ganharem vida na minha frente. Quase pude tocá-los. Também senti uma delicadeza e um tom quase que de poesia.Lindo!!! Obrigado por compartilhar conosco essa sua pequena obra-prima!!!
ResponderExcluirObrigada, Alexandre! Fico feliz que tenha gostado. Pra mim essas personagens também são muito reais. Bjsssss...
ResponderExcluirgenial. gostei demais.
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