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sábado, 27 de agosto de 2011

Carola


Foi como uma chuva grossa caindo na terra ardida que a paixão entrou na vida de Carola: a primeira vez! Sentiu-se encharcada de emoções que não conseguia identificar, só sabia que era terra fértil, insaciável, cheia de vida; o mundo ganhava aspectos antes nunca percebidos por ela. O vermelho não costumava ser assim, nem o amarelo, nem o tamanho dos prédios ou o rosto das pessoas. Aquilo ali é um passarinho?! Que lindo! 
A energia que habitava seu corpo agora não podia existir somente nos limites mortais de seus órgãos, ossos, poros. Queria ser eterna, grande, múltipla; como se tivesse sido picada por uma aranha radioativa ou que sua força descomunal viesse do sol tornou-se super. Estava quase convencida de que poderia qualquer coisa agora tamanha a força que explodia dentro dela e irradiava pelos membros, criando uma atmosfera de beleza e felicidade num raio de quilômetros até não se sabe onde: Carola amava Ciro. 
A intensidade, as juras, os planos, a sensação de que pertencia a alguém. Descobriu o próprio corpo e outro alheio ao seu, olhava para Ciro espantada, como se ele fosse seu coração batendo fora do corpo; a distância equivalia à morte. Não sabia ainda que a paixão é bicho solto, indômito e violento, que vaga pelos cumes dos montes e pelos mais profundos vales, torcendo os estômagos dos mais fortes e valentes, tirando-lhes o sossego, sorvendo largamente as forças que os mantém de pé. Carola não entendia o que lhe acontecia, e não se deve flertar com o desconhecido levianamente. Ignorava, a menina, que não se domestica a paixão, mas pode-se dosar a quantidade diária de uso. Como um lago onde mergulhamos devagar e gradativamente mais fundo, tateando seu chão com os dedos dos pés a procura de segurança, sentindo a temperatura da água, banhando-se no raso até que não haja dúvidas de que um primeiro mergulho, superficial e de reconhecimento, seja seguro. Depois, puxando um pouco mais de ar, sentir-se forte para conhecer as pedras mais próximas, a vida pertencente ao lugar, todas as mudanças de cor e sons submersos. Só então é que alguns, não todos, não mesmo, alguns fortes e de espíritos aventureiros, preparados para as grandes descobertas, é que sugam todo o ar que seus pulmões podem suportar e mergulham até as cavernas mais escondidas e perigosas. Há os que tentaram e jamais puderam voltar. Há os que se perderam e por lá ficaram, esquecidos do mundo da superfície. Há também os que não ousam mergulhar e desconhecem a beleza que só existe na profundidade, prendendo-se ao espelho d’água e a sua rasa complexidade.


Carola não teve medo, mas sua coragem não era a dos valentes, e sim a dos impetuosos e desavisados. Entregou-se desvairadamente a Ciro, tanto que não sabia mais dizer quem era, perdera a identidade. Sua ânsia de ser correspondida era tamanha que não devolvia ao amante o espaço ao qual ele se acostumara a viver, direito adquirido e resguardado pela Constituição. 
Estava sempre a um braço de distância do rapaz, como se um campo gravitacional os atraísse e a qualquer momento pudessem fundir os corpos, tornando-se uma mesma massa, disforme e inextricável. Bebia suas palavras, respirava o ar que expelia, tornou-se uma sombra, uma extensão do corpo de Ciro. Quando ele pensava em pegar um copo, o braço de Carola se estendia e o levava a boca, dando-lhe os goles, não de acordo com sua sede, mas com uma vagarosidade torturante de quem queria se fazer presente. 
Ela o banhava, o vestia, o penteava, olhando com olhos cada vez mais esbugalhados e penetrantes. Precisava tocá-lo incessantemente, como um cego reconhecendo o caminho. E seu desejo era tanto, que em pouco tempo não havia uma gota de energia em Ciro para suprir as necessidades tiranas e egoístas da moça.


Assustado com o monstro implacável com o qual passou a conviver, Ciro tentou desvencilhar-se alegando viagens a trabalho, doenças de familiares, dificuldades financeiras. Para tudo Carola tinha uma solução imediata e imperiosa, da qual não havia como fugir. 
Ciro apelou como pode, tentou fugir duas ou três vezes, mas Carola não dormia mais. Ligou para a polícia, contou para amigos, mas foi desacreditado por ela que afirmava que ele sofria dos nervos nos últimos tempos. Como último recurso, tentou ameaçá-la de tirar-lhe o que mais queria com uma faca atravessada ao próprio pescoço. Com a calma doente de quem tinha certeza de estar no controle da situação, Carola olhou para o espelho e disse:


- É inútil, amor. Eu te recrio quantas vezes for necessário, porque estás dentro de mim.        


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