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sábado, 27 de agosto de 2011

O Apuana*




Na pequena cidade de Redenção, esquecido entre pacotes e envelopes, vivia um homem franzino de olhos lacrimosos, que um dia fora considerado poeta, mas que as contas da casa e a força indiscutível do tempo transformaram em mensageiro por necessidade. Seu nome era José Antonino, mas atendia pela alcunha de Zé Apuana. Esse apelido quem lhe deu foi um índio velho, amigo de seu avô, quando viu o menino de dezesseis anos correndo de um lado para o outro, levando e trazendo mensagens, tanto entre os moradores de Redenção, quanto das cidades vizinhas.


Zé Apuana cobrava de vinte a setenta centavos, de acordo com a distância, a urgência e a importância das correspondências. Em sua casa mantinha papéis de cartas, selos, lacres de cera, canetas, caixas, envelopes e pacotes de todas as cores e formatos que não havia como um cliente sair insatisfeito. Vivia modestamente com a esposa, Amparo, e as filhas: Socorro e Consolação. As três eram a razão de sua existência, mas também motivo de constante preocupação. Apesar de serem virtuosas e extremamente dedicadas a lhe fazer feliz, não havia mulheres mais belas e atraentes de que se ouvisse falar, por isso, muito comumente a cidade recebia visitantes do mundo inteiro levados pelos rumores de que sereias abandonaram a vida marítima e viviam em Redenção, escondidas do assédio popular. Quando isso acontecia, a cidade se solidarizava com o mensageiro e amigo, e todos se uniam para dar informações falsas aos viajantes, de forma que a casa de pedra nas encostas da Montanha Rochosa jamais era encontrada.


Amparo cuidava de sua família como se tivesse nascido unicamente para isso. No passado, havia sido uma moça formosa e não faltaram pretendentes afortunados que lhe fizessem propostas de torná-la rainha de castelos medievais; mesmo hoje, com duas filhas moças, sua beleza podia fazer um homem se esquecer de respirar. Mas recusou todos eles porque desde os doze anos sabia com quem se casaria e a vida que teria, pois um sonho lhe revelara tudo. Esperou pacientemente que Zé Apuana fosse levado até ela por uma mensagem de nascimento de uma prima distante. Já estava com as roupinhas dobradas dentro de uma trouxinha de pano quando Apuana bateu à porta de sua casa, desceu então as escadinhas de madeira até a cozinha e disse à mãe:


- É ele o rapaz de quem lhe falei... – virou-se para ele e explicou - ... vou com você e serei sua mulher.


Zé Apuana não questionou porque teve a certeza de que estava diante da sorte em pessoa, colocou a trouxinha da moça sobre as costas e partiram para a maior das aventuras. No ano seguinte lhes nasceu Socorro, seguida de Consolação em menos de um ano. Amparo dirigiu-se ao marido com sua costumeira forma de noticiar e avisou:


- Estas serão as únicas herdeiras que te darei.


Apuana, que já havia aprendido a levar a mulher a sério, sorriu satisfeito por ter tanta sorte. Viviam num mundo à parte, construído com algum esforço por Amparo, na tentativa de preservar a família da maldade alheia, e de um pressentimento ruim que ela tinha certeza de que os rondava.Sentia que tanta felicidade desequilibrava o curso natural da vida e temia pelo dia em que sua família fosse alcançada por alguma tragédia.


As filhas eram duas dádivas dos Céus. Socorro era responsável por tudo o que a casa produzia: plantava verduras, legumes e frutas e os vendia no mercadinho de seu Januário; engordava porcos para abatê-los em dezembro e criava galinhas para tirar-lhes os ovos. Antes que qualquer pessoa da casa estivesse de pé, já havia tirado leite da vaca e posto para ferver, dado comida aos bichos e aguado as plantas. Consolação lavava e passava roupa para as famílias da região; também fazia os partos da redondeza, ofício aprendido com a índia Jacira quando esta ainda respondia pelos nascimentos do povo do lugar. A família vivia assim, uma vida boa, apesar de simples, e não reclamavam de nada que pudesse lhes faltar.


Numa tarde de ventos fortes – mau sinal, de acordo com Amparo – Zé Apuana voltou da cidade acompanhado de um rapaz que estava com a cabeça e o braço enfaixados. Na tentativa de livrar Apuana de um bando de assaltantes, fora violentamente atropelado por um cavalo ao se colocar entre o mensageiro e o bicho. Os quatro parentes estavam em dívida com o rapaz, e as mulheres, depois que se refizeram do susto, agradeceram de olhos marejados. Serviram-lhe comida enquanto Consolação arrumava seu quarto para hospedar o estranho e carregava suas coisinhas para o quarto da irmã. Prepararam um banho quente para o rapaz e Amparo o ajudou a se lavar, pois as filhas ainda não tinham visto um homem nu. Antes que ele se recolhesse para o quarto, Socorro dirigiu-lhe a palavra:


- Como é mesmo seu nome moço?


- Rafael. Rafael Dores ao vosso dispor – e lançou um olhar às moças que as fez pensar que estavam diante de um anjo, tamanha doçura.


Os dias se passaram e a família foi se acostumando à presença de Rafael, e Zé Apuana se afeiçoou a ele como a um filho. Quando melhorou consideravelmente, já não queriam que fosse embora. Apuana sentava-se com Rafael para jogar xadrez, que sempre foi uma grande paixão para o mensageiro; o rapaz ajudava nas entregas e buscava os recados nos lugares mais próximos, fazia o serviço mais pesado da casa e acompanhava as meninas à cidade sempre que necessário. Não pedia absolutamente nada em troca e até esqueceu-se um pouco de seu desejo de viajar pelo mundo.


A única a tratá-lo com reservas era Amparo, que começou a desconfiar de uma cumplicidade entre Rafael e suas filhas, e isso a estava incomodando. Teve a impressão de flagrar olhares e sinais, achou-as mais alegres e femininas, percebeu que se distraíam de suas obrigações e não acordavam tão cedo como era de costume. Para agravar suas desconfianças, não encontrou as meninas na cama quando levantou para beber água de madrugada por três noites consecutivas. Concluiu então, que a desgraça e a vergonha tinham finalmente alcançado sua família como temia, e que suas filhas estavam corrompidas apesar de seu esforço em tentar afastá-las da maldade do mundo. Amaldiçoou o dia em que Rafael cruzou o caminho de seu marido e perdeu a calma ao pensar nas feições angelicais do moço e de como se aproveitou da confiança de Apuana para lhe roubar das filhas a inocência e encher suas cabecinhas de safadezas. Lembrou-se de sua infância triste, quando era abusada por um amigo da família, e de como desconfiaram dela quando pediu, desesperada, ajuda aos pais para livrar-se de seu tormento. Tentou se esquecer de tudo e refazer sua vida, protegendo-se do mal afastada das pessoas numa vida idealizada. Sabia que a felicidade não dura eternamente e que chegaria a hora do acerto de contas. Mas isso ela não poderia suportar, suas filhas jamais passariam pelo que ela passou. Ela estava atenta e tomaria qualquer atitude que protegesse suas meninas. Quando o sol saiu de trás das montanhas seus olhos não viram a luz porque estava cega de ódio. Exigiu de Apuana que mandasse Rafael embora, fazendo-o escolher entre os dois. Não deu qualquer explicação, e a todos pareceu uma crise de ciúmes pela falta do filho que não pode dar ao marido. Apuana tentou argumentar, Rafael ainda não estava totalmente recuperado e ainda havia a ameaça dos assaltantes que juraram vingança. Nada fez com que Amparo mudasse de idéia. Rafael deixou o tabuleiro, prometendo jogar quando se encontrassem novamente pelas estradas da vida. Os dois amigos se abraçaram e se despediram entre lágrimas.


Uma semana depois, Consolação chegou à casa aos gritos com a notícia de que os moradores de Tornados receberam a visita de um rapaz com a descrição de Rafael. Ao que parece, ele reconheceu alguns bandidos que tentaram assaltar Apuana, e fora reconhecido por eles, que logo exigiram vingança. Rafael tentou sair da vila, mas foi capturado, torturado e morto. Seu corpo despedaçado foi enterrado no cemitério de Açucena.


Apuana saiu desembestado para confirmar a história com esperança de que fosse um mal entendido horrível. Amparo, golpeada pela culpa, responsabilizou as filhas. Disse-lhes que sabia de tudo e que se não tivessem agido levianamente, não precisaria ter mandado o rapaz embora. Foi Socorro que mandou que a mãe se calasse e falou:


- Você está enganada, mulher! Rafael nos ajudava a preparar uma surpresa para o pai. Sabemos de sua paixão pelo xadrez, que ele não tinha com quem jogar, e pedimos que Rafael nos ensinasse para jogarmos no dia de seu aniversário. Só não te falamos nada porque você nunca soube guardar segredos do papai.  Usávamos a madrugada para não levantarmos suspeitas. Rafael sempre nos tratou com respeito e nos tinha como irmãs.


- Mãe, - completou Consolação – o que a senhora fez?!


Amparo levou as mãos à cabeça, o desespero invadiu-lhe a alma. Virou-se para as filhas e desabafou:


- Sempre soube meninas, que a desgraça nos alcançaria, mas jamais poderia imaginar que, apesar de todo o meu esforço para evitar que isso acontecesse, eu mesma lhe abriria as portas de minha casa.



*aquele que corre.

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