Se havia uma mulher de fibra na região de Cabeceira do
Rio Seco seu nome era Úrsula Rodrigues. Seu aspecto já demonstrava seu
temperamento prático e sua conhecida valentia; trazia os cabelos grisalhos
curtos, batidos na nuca, não era magra nem gorda, mas de uma musculatura socada
e rígida, debaixo da pele bronzeada por anos de trabalho em seu sítio. Falava
com uma voz grave e rouca, e um leve sotaque espanhol, pois viera de Madri aos
dezesseis anos com a família, a bordo de um navio cheio de gente e peste. O pai
estava a caminho da cidade grande para trabalhar nas fábricas, mas parou em
Cabeceira e nunca mais saiu da cidade. Arrumou emprego nas terras do Coronel
Amaral que, com o passar dos anos, cedeu-lhe um pequeno pedaço com o qual fez um
sítio. Úrsula era a filha única e aprendeu com o pai a nunca depender de homem
algum. Foi para ele o mesmo que dez filhos homens, o que lhe deu a firmeza e o
caráter que rendeu mais de um século após sua morte a fama de justa e
verdadeira.
Quando fez dezenove
anos, Úrsula casou-se com Tomás Amaral, um dos filhos adotivos do Coronel.
Deu-lhe nove filhos, todos homens, dos quais apenas quatro chegaram a idade
adulta. Tomás, ao contrário da esposa, era um homem de sangue fraco, não
suportava o trabalho fosse qual fosse, andava sempre às voltas de alguma dor ou
doença inventada, e, quando era posto contra a parede, chorava e alegava que
sofria dos nervos para não ser aborrecido.
Úrsula aprendeu a não dar ouvidos aos achaques do marido,
suportava sua fraqueza por amor aos filhos e consideração ao Coronel.
Na mesma noite em que seu menino mais novo morreu de
febre em seus braços, Úrsula recebeu o corpo do marido, trazido pelos amigos de
bebedeira, vindos da casa de dona Iolanda. Parece que ele decidiu que não viveria
mais sem a menina Vânia, a russa amazona, chamada assim por montar em seus
parceiros de noitada de botas, esporas e chicote, pois sua especialidade era
dominar. Pegou o próprio cinto e afivelou o pescoço nos caibros do teto até seu
coração parar. Vânia assistiu a tudo sentada na cama, achando que fosse
brincadeira, e que Tomás só estivesse com ciúmes pueris de seu casamento e
futura partida. Quando percebeu que era tarde demais, chamou os amigos do
homem, que o retiraram de lá, o vestiram e o levaram para a esposa. Úrsula
velou pai e filho pelo resto da noite e, no dia seguinte, antes de fechar os
caixões, deu um beijo na testa do filho, e, ao marido sussurrou:
- Que grande bosta você me foi!
Assim Úrsula enterrou-se na viuvez aos trinta e cinco
anos, e consolou-se no trabalho com mais vontade ainda nas terras de seus pais.
Viu, com o passar dos anos, os filhos casarem e partirem um a um, deixando-a na
companhia de seus bichos e seu trabalho.
Quando completou oitenta anos, Úrsula ainda possuía a
disposição de um guerreiro persa, e sua rotina não havia alterado em quase
nada. Vivia do que plantava, mas depois de sucessivas enchentes, separadas umas
das outras por períodos longos de seca, sua produção era escassa e mal dava
para alimentá-la. Numa das épocas de grandes chuvas, no exato momento em que
seu relógio anunciou meio-dia, e o céu um breve período de trégua, Úrsula ouviu
a sua porta, batidas claramente masculinas. Pode perceber a altura e o peso do
visitante antes mesmo de lhe abrir a casa, tal era a transparência de seus
toques.
- Dia!
- Buenos!
- Desculpe-me incomodá-la senhora, mas estou procurando
um lugar onde possa trabalhar por um período em troca de comida. Estou exausto
de viagens e, no caminho para cá não encontrei quem me desse um gole d’água.
Tenho força nas mãos e a disposição de um cavalo, em troca de comida e um lugar
para ficar posso trabalhar quase sem descanso.
Úrsula apertou seus olhinhos cansados e perscrutou o
rapaz a sua frente; calculou que ele não tivesse muito mais que trinta anos, a
voz possuía a firmeza dos que falam a verdade, mas sua pele era clara demais
para a de um trabalhador braçal. Os cabelos castanhos precisavam de corte, e a
barba indicava uns três meses sem ver a lâmina. Tinha, aproximadamente, dois
metros e uns cem quilos bem pesados.
- Sente-se nos degraus da varanda, eu já volto.
Úrsula foi até a cozinha e voltou pouco depois com um
prato farto de comida e uma garrafa de água fresca.
- Eu tinha acabado de fazer o almoço quando você chegou.
Coma tranquilo, quando terminar conversamos.
- Obrigado.
- Qual é o seu nome peão?
- Graciano, seu servo.
- Vou passar um café para acompanhar a prosa, espere
aqui.
O rapaz bebeu primeiro a água, pois estava com a sede de
um dia inteiro, e enquanto comia, contava para Úrsula como entendia de
plantações por ter trabalhado nas mais diversas funções na lida da terra em
tantos lugares diferentes, que conhecia os climas e o que se adapta melhor a
cada um deles. Combinaram que Graciano ficaria ali para realizar as tarefas
mais pesadas, e não falaram nada sobre o tempo de permanência. Ambos possuíam
almas livres e, se a um fosse difícil se fixar em qualquer lugar, à outra, a
menor indicação de cárcere dava-lhe borbulhas no sangue.
Com o passar do tempo, Úrsula percebeu que as coisas
mudavam rapidamente em suas terras. Primeiro a aridez e infertilidade do solo
deu lugar a um terreno fértil, produto das chuvas constantes e equilibradas,
raríssimas na região, e do trabalho diligente do ajudante misterioso. Depois as
galinhas começaram a botar ovos quatro vezes ao dia, e as vacas não paravam de
esguichar leite pelas tetas brilhantes de tão esticadas. Até Lilica, a
cachorrinha, apareceu prenha, apesar de Sherlock ter mais de vinte anos, uma
idade avançada para qualquer cachorro. Em um tempo absurdamente curto, pés de
manga, jaca, banana, laranja, apareceram apinhados, e eram tantas as frutas e
reapareciam tão rápido, que não se podia sentar um minuto no pequeno sítio. Os
aipins pulavam da terra tão fortes e macios, que pessoas vinham de longe
comprá-los.
Graciano não parava de trabalhar. Dormia tarde e acordava
cedo e, além dos cuidados com a terra e os animais, também comercializava os
produtos na cidade com a velha caminhonete que ele mesmo consertou. Quando
voltava, preparava tudo para o dia seguinte e ajudava Úrsula com os clientes
que chegavam sem parar. À noite, pessoas da redondeza vinham ouvir a viola do
moço e, quando o frio baixava, tomavam uma aguardente para aquecer o corpo.
Úrsula gostava de cantar com a voz fraquinha as melodias castelhanas que
lembravam sua infância. A alegria era tanta, que não viam o tempo passar, e não
foram poucas as vezes que emendaram a noite de festa num dia inteiro de
trabalho pesado.
Aos poucos Úrsula foi percebendo que o milagre da terra
também alterava a ela mesma. Um dia acordou e teve a impressão de que sua pele
parecia mais esticada e viçosa, e nos cabelos apareceram fios castanhos.
Percebeu que remoçava lentamente, e notou as coxas engrossarem e os olhos
voltarem a enxergar sem a ajuda dos óculos; sua voz não mais tremia e, seus
braços, a força da juventude.
Ao fim de oito anos, acordou com a mesma idade de
Graciano, e ficou maravilhada com as possibilidades que se descortinavam a sua
frente. Não teve dúvidas de que aquele fenômeno estivesse intimamente
relacionado ao seu hóspede especial. Levantou-se da cama e olhou pela janela, o
sol ainda não havia saído e todo o sítio repousava mergulhado em silêncio. Ao
redor, tudo seguia o curso normal, só dentro de seus portões o sobrenatural
tinha liberdade para acontecer. Debaixo das mangueiras, enrolado dentro de uma
rede, Graciano dormia como um inocente. Úrsula jogou a manta de lã sobre os
ombros e foi ao encontro do jovem. No caminho, parou diante do espelho e
contemplou mais uma vez seu reflexo impressionante. Atravessou a porta da
frente decidida, caminhou pela varanda lateral em direção ao pomar, e desceu as
escadas colocando-se ao lado do moço. Graciano abriu os olhos e a rede, e
recebeu com um largo sorriso a mulher que, pacientemente, aguardou até que
estivesse pronta.
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