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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Amigo Advogado!




Sem saber como ou por que, Amaro achou-se num lugar que dava a impressão de ser uma sala, mas havia uma amplitude em seus limites que o deixou confuso quanto à definição que poderia fazer do local. Deve ser a claridade – ele pensou – e, provavelmente o fosse. Jamais havia conhecido um ambiente tão claro. Viu que não muito longe de onde estava havia um banco onde algumas pessoas aguardavam sentadas. Dirigiu-se para lá e falou com o último da fila:

- Posso me sentar?

- Oh, sim, faça o favor.

- Amaro.

- Hã? Ah, sim, Cristiano. Desculpe-me, eu prestava atenção à chamada.

Só então percebeu que as pessoas levantavam-se à medida que eram chamadas por um homem belíssimo e vestido de branco, postado ao lado de uma porta enorme e muito brilhante. Amaro tentou ver o que as esperava do outro lado, mas uma luz intensa saía da porta e era impossível olhar para ela quando aberta. Confuso e curioso, Amaro perguntou:

- Chamada?

- Sim. Estão chamando as pessoas por ordem de chegada.

- Ah, entendi. Há quanto tempo está aqui?

- Não muito. Não sei dizer precisamente quanto. Parece pouco, mas ouvi um cara dizer que o tempo aqui simplesmente não existe.

- Não existe?! Que curioso. Você sabe dizer onde estamos? Tudo isso é muito estranho, agora pouco eu ia para o trabalho e...

- É eu sei. Também fiquei arrasado quando soube. Quer dizer, é uma loucura não?

- Na entrada disseram que... Mas não pode ser! Talvez esteja sonhando...

- Não, não. Sonho eu sei que não é. Olha, sei que é difícil de aceitar, já questionei de tudo o que é jeito, mas a verdade é que...

- Estamos mortos?

- Exatamente, eu não teria definido melhor.

- O que é isso então?

- Uma espécie de entrevista, algo do tipo: esclareça suas dúvidas. De que você morreu?

- Acho que enfartei. Não sei, foi tudo muito rápido, pode ter sido um acidente também.

- Hum... Eu fui atropelado. Ia para o trabalho de bicicleta quando um carro desgovernado me atingiu. Uma estupidez. Se não estivesse de fones de ouvido, talvez tivesse escutado alguma coisa, vai saber. O pior é que muita gente me avisou que acabaria desse jeito, mas já estava tão acostumado que achei que, se fosse para acontece já teria acontecido. Autoconfiança, às vezes, prejudica mais que ajuda. A correria também, a rotina agitada... Não quero fugir à responsabilidade, mas trabalho muito e estou sempre correndo. Sou, ou melhor, costumava ser professor de dança. Ganhava por aula e trabalhava em duas academias. Tinha o hábito de escutar as músicas das aulas e repassar os passos mentalmente, inventando coreografias enquanto me deslocava de um trabalho para o outro de bicicleta. Parece que economizar tempo não foi uma boa decisão.

- Que isso! Não se culpe. Pelo menos sua responsabilidade foi indireta. Meu caso é bem diferente. Venho me matando lentamente há alguns anos, fui o único responsável pelo que me aconteceu. Cultivei hábitos nocivos para a saúde e o resultado é este que vemos agora. Quando garoto, costumava jogar bola, andava de bicicleta, nadava com meus amigos num rio perto de casa; na adolescência virei o garoto rebelde e acabei adquirindo hábitos terríveis. Fumava, bebia demais nas festas e não parei mais. Depois de casado, ainda somei a isso, uma dieta gordurosa e o estresse das responsabilidades de um chefe de família. Veja você que eu fumava quatro maços de cigarro por dia! Uma locomotiva humana – dizia minha mulher. Ainda ontem acordei indisposto, com uma dorzinha nas costas, mas ao invés de procurar o médico, tomei um analgésico por conta própria e pedi à mulher para fritar dois ovos com bacon para o café-da-manhã. Ah, eu bebia café o dia inteiro!

- Cara, você se envenenava!

- E tem mais, sempre almoço na rua durante a semana e ontem fui a um restaurante perto do escritório que serve feijoada às quintas. Sou freguês. Comi dois pratos bem servidos e voltei para o trabalho.

- O que você fazia?

- Era advogado criminalista. E dos bons! Meu currículo era invejável, mas tudo tem o seu preço. Agora percebo que passei mais tempo trabalhando do que deveria. Não consigo me lembrar da última vez que saí de férias com a família, ou de ter dormido mais de cinco horas por noite. Só via meus filhos quando eles já estavam dormindo, ou de relance entre um compromisso e outro. Isso me enchia de culpa e eu vivia angustiado. Minha esposa cansou de me avisar, aliás, sobre muitas coisas, mas fui arrogante demais para escutá-la. Sei o quanto isso é óbvio, mas gostaria de ter feito diferente. Gostaria de ter tido uma vida mais saudável, com espaço para cuidar de mim e dos que amo. Fui um idiota em adiar a caminhada e a dieta. Estou muito arrependido de não ter ido ao médico assim que me senti mal. Para você ter uma idéia, não ia ao médico há uns seis ou sete anos.

- Não estou surpreso que tenha infartado, mas se te consola também estou aqui. Eu era vegetariano, malhava cinco vezes na semana, fazia check up uma vez ao ano...

- É, mas no seu caso foi acidente. Não se pode prever um acidente. Se não fosse tão tarde, eu mesmo te representaria nesse caso. Você poderia ganhar uma boa indenização. É uma pena.

- Uma pena!

- Como eu estava dizendo, caminhei direitinho para os braços da “indesejada”. Quando minha dor aumentou à noite, tomei mais analgésicos e fui para a cama. No dia seguinte, minha cabeça estourava. Engoli mais algumas pílulas e um copo grande de café. A caminho do trabalho a dor aumentou e tive um ataque enquanto dirigia. Não consigo lembrar muita coisa porque a dor me desorientou, mas sei que meu pé pressionou o acelerador e atravessei os cruzamento das ruas tal e tal direto num poste. Se não foi o ataque que me trouxe aqui, com certeza foi o acidente.

- Não acredito, fui atropelado hoje nesse mesmo cruzamento! Você me atropelou advogado! Mas que filho-da-mãe! E que situação mais absurda a nossa, não?!

- Meu Deus, não pode ser! Nem sei o que te dizer além de sinto muito, de verdade. Você tem certeza? Porque não me lembro de ter atropelado ninguém. Talvez algum de nós esteja errado quanto ao lugar do acidente, talvez...

- Não há engano algum, amigo advogado. Há na verdade uma grande ironia. Percebe?

- Não estou entendendo. Do que está falando?

- Ora, amigo advogado, é simples: sempre tive uma vida saudável e você era o meu extremo oposto. Eu acreditava que viveria muitos anos graças ao meu estilo de vida, mas atravessei seu caminho e isso foi decisivo para mim. É certo que você morreria de qualquer forma, mas eu não tive sorte. Daí conclui que uma vida desregrada não prejudica somente a pessoa que a adota, mas inclusive, os que a abominam. Percebe a ironia?

- Realmente é uma conclusão plausível, mas não a vejo com o mesmo humor com que você a expõe. Sinto-me pior agora. Como gostaria de reverter tudo isso!

- Não posso resistir, preciso te fazer uma pergunta, amigo advogado.

- O que quiser.

- Você ainda pegaria meu caso?

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