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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O Mequetrefe



Suave Formosura odiava seu nome até a raiz de seus cabelos. O motivo era óbvio para quem a conhecia: não possuía nada de suave, pois era a personificação dos desastres naturais, e, para piorar, pertencia a uma família de lindas mulheres e era a única desprovida de dotes físicos ou intelectuais. Recebeu das irmãs o apelido de Carrapicho, não por causa de seu cabelo liso e dourado, mas porque era indiscutivelmente indomável. Seu sonho sempre fora se mudar da pequena cidade em que morava com os pais e nove irmãos. Nenhum deles estudou muito e, logo cedo, ajudavam o pai na roça. Enquanto carregava a caminhonete da família de abacaxis ou cavava a terra com a enxada e sentia seus dedos arderem no constante contato com o cabo, Formosura se distraía com pensamentos de princesa raptada que aguardava o príncipe que a tiraria de uma vida sem aventuras; algumas vezes, tinha certeza de que, não fosse sua imaginação, jamais poderia suportar tanto trabalho e tanta pobreza.
Foi pensando nesse príncipe que resolveu não deixar a oportunidade passar quando a viu chegar de terno, gravata, e uma pasta preta de couro surrada. Seu nome era Juvenal Arantes Louzada. A estrutura física imponente, a pele morena e o peito largo e musculoso, não combinavam com o sorriso tímido e a indecisão dos olhos. Chegou de maneira inesperada para visitar os irmãos e chamou a atenção imediata de todas as meninas em idade de se casar e com sonhos de viver os romances que ouviam no rádio. À noitinha, todos os moradores tinham o costume de se reunir na Praça Vinte e Um de Outubro, e era de se esperar que o forasteiro não fugisse ao lugar comum. Olhos femininos perscrutavam tudo o que estivesse ao alcance de sua visão, procurando a novidade e uma oportunidade de travar amizade – o primeiro passo em direção ao altar. Juvenal, sujeito experiente e de propósitos questionáveis, teve a esperteza de não aparecer na primeira noite justamente com o intento de provocar entre as jovens a curiosidade que leva à imprudência. Passou assim, recluso, inclusive o sábado, dia internacional dos solteiros se reunirem.
No domingo pela manhã, quando a cidade se espreguiçava para espantar a cama das costas, Juvenal resolveu ir à padaria. O alvoroço foi geral. Cabeças ainda repletas de rolinhos apareceram por todos os lados, mãos delicadas destrancando as janelas eram seguidas de ombros que se empurravam para conseguir espaço e os risinhos se encontraram no ar para formar uma canção que embalava os passos convencidos do mequetrefe. No canto da boca levantado, via-se que Juvenal sabia que seu plano estava no caminho certo.
Desde esse dia, Juvenal começou a andar pela cidade com “ares” de homem sério, sempre bem arrumado e perfumado, vestido em terno de linho para não fugir do vulgar. Reunia-se com os homens da cidade para tratar de negócios e vendia terrenos na praia para os fazendeiros da região a preços bem abaixo do mercado. Às meninas dizia que possuía um excelente apartamento na Capital e que só estava ali porque as saudades da família o estavam deixando deprimido e precisava recobrar o ânimo. Prometeu-lhes uma vista para o mar e bailes todas as noites enquanto as transformava em mulheres sorridentes e desejosas do próximo encontro. Só não levou para o barracão abandonado às margens da Lagoa do Eremita, as senhoras, as crianças e Suave Formosura.
A menina parecia alheia ao desprezo que o rapaz lhe dispensava. Tinha os pensamentos voltados para Juvenal até quando dormia. Sua obsessão tornou-se o motivo de cada batida de seu coração, e como era de vontade inabalável, arrumou suas coisas e esperou. Sabia das cafajestagens de Juvenal e onde elas o levariam, ficou atenta para pegar a ocasião no voo.
Quando Doutor Diamantino voltou da Capital dizendo que não havia terreno nenhum à venda e que o cartório garantiu que os documentos de Juvenal não valiam absolutamente nada, os homens não puderam mais fazer vista grossa às intimidades de suas mulheres e filhas com o salafrário e empreenderam uma busca com a intenção de fazê-lo pedir perdão a Deus pessoalmente. Suave Formosura alcançou Juvenal antes de todos, contou-lhe o que se passava e o plano que tinha para fugirem dali. Juvenal não gostou nada do plural da frase, mas percebeu que se tratava daquelas situações nas quais é melhor ser contrariado que morto e seguiu Formosura. A menina o escondeu na caminhonete da família, entre as caixas do abacaxi colhido para a feira do dia seguinte. De madrugada, os dois empurraram o caminhão a uma distância segura e rumaram para a cidade mais próxima. Formosura deixou a caminhonete com um amigo de seu pai e pediu a ele que entregasse também um bilhete que explicaria tudo. Juvenal queria se ver livre da menina, mas saiu com a roupa do corpo e decidiu que a manteria por perto até que pudesse se virar sozinho novamente. Isso acabou se tornando impossível, pois Formosura agarrou-se a ele como uma sombra e fez-se necessária a cada instante até que Juvenal não soubesse mais viver sem ela.
O casal passou a viver de pequenos golpes e Formosura se mostrou ainda mais sem caráter que Juvenal, planejando desonestidades com o intuito de conquistar a admiração do cúmplice. Quando o tempo passou trazendo consigo os filhos desnutridos e adoentados, Formosura transformou-se no pior inimigo que Juvenal poderia ter e seus dias eram uma sucessão de miséria e brigas, que só paravam para encomendar mais uma boquinha que disputaria com os irmãos o peito da mãe e os carinhos do pai.
Apesar de amar os filhos com sinceridade, a convivência com a mulher passou a ser insuportável. Juvenal passava a maior parte do tempo fora de casa e não escondia de Formosura as inúmeras amantes que colecionava. Algumas vezes, ela mesma o buscava na casa de alguma vizinha, e não raro saía no tapa com as rivais.
Traída e humilhada, Formosura recorreu aos parentes e suplicou para que a aceitassem de volta. Seu pai, que nunca havia se conformado com sua ausência, mandou que Alma Celeste – a mais velha das irmãs – fosse ao encontro da pródiga para buscá-la.
Formosura combinou com Celeste que sua presença na casa deveria parecer uma visita de reconciliação, afinal, o marido jamais permitiria que ela fosse embora com os filhos. De acordo com o plano, quando ele saísse para o que chamava de trabalho, as mulheres poriam as crianças na caminhonete com algumas das tralhas que Formosura acreditava fazerem parte da partilha de bens e dariam adeus àquela vida esmolada para folgar no pequeno sítio da família, que agora parecia o paraíso para a filha ingrata.
Formosura sentia o coração bater descompassado de saudades dos irmãos, dos pais, e até dos abacaxis espinhentos que cresceu cultivando. Pensou que não suportaria passar ainda uma noite inteira na expectativa de se ver livre de um sonho malfadado, mas se deitou com angústias de se despedir do homem a quem deu seu coração, e quase tocou seu ombro para mendigar uma despedida decente. Pensou no que seria dele sem alguém que o amasse, e dormiu entre lágrimas que bem poderiam ser de tristeza ou alívio, - ela mesma não saberia precisar – para acordar poucas horas depois com os soluços da irmã no sofá da sala. Como Juvenal não estava ao seu lado na cama, soube de que mal Celeste sofria antes mesmo de entreabrir a porta e constatar que sua despedida havia sido dada à outra. Voltou para a cama com a tranqüilidade de quem já sabia o que fazer. Esperou que Juvenal voltasse e dormisse o sono dos satisfeitos, chamou a irmã e disse:
- Vamos agora.
Formosura pegou os filhos ainda dormindo enrolados em cobertores, deitou os mais velhos na carroceria da caminhonete e o bebezinho no colo da irmã no banco do carona, voltou para casa, pegou a faca mais afiada da cozinha e cortou a garganta do marido. Não parou para olhar, sequer lavou as mãos. Entrou na caminhonete e, quando Celeste lhe perguntou o que havia acontecido, respondeu suave como o próprio nome:
- Querida, você não ia querer que eu te mostrasse.

  







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