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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Reflexões de uma insone








Noite alta, um bêbado passa trôpego e cai. Desde que descobri esse carocinho em meu corpo, tão presente e indesejado, passo as noites acordada, vendo o mundo noturno de minha rua pela janela. É impossível resistir ao desejo de ser eterna, mas é preciso aceitar a própria impotência diante de uma realidade como essa: não podemos impedir que a fatalidade nos alcance.


Obviamente, estou numa fase muito reflexiva e, a primeira pergunta que me fiz quando minha finitude desfilou diante de meus olhos, esvoaçante e enérgica, foi se valeu à pena. Valeu? Valeu?! Seja como for, nunca estaremos satisfeitos. EU nunca estarei satisfeita. Poderia ter feito teatro, ter ido à Paris, viajado o mundo de mochila nas costas, aprendido mandarim. Mas não! Pensei na estabilidade, no amor, em não sair de perto dos meus pais,... em Carlos. E quando ele me garantiu que seríamos felizes e inseparáveis, não tive dúvidas ou reservas, entreguei-me desarmada, como se não pudesse existir verdade além de nós dois. É claro que ele não pareceu mais tão certo de nosso futuro depois que descobrimos que não estaríamos sozinhos.


Quando Marisa nasceu, morávamos na casa de meus pais. Foi uma fase difícil, mas olhando para trás constato como éramos felizes. Aquele quartinho apertado, esbarrar no berço cada vez que nos levantávamos da cama, a otite de Marisa... nada disso foi pesado porque estávamos juntos. Então compramos nosso apartamento e tivemos que enfrentar outros tipos de desafios. Foi uma barra conciliar nossos empregos, a creche de Marisinha, a doença do meu sogro, o nascimento de Artur, os malabarismos financeiros e todas aquelas ausências de Carlos. Optei por não parar de trabalhar e agora me arrependo um pouco disso. Sei que estaria arrependida se tivesse abandonado a carreira também. A gente sempre considera um pouco a opção que não adotou. Chega um ponto da vida que a gente pensa como seria se tivesse feito outras escolhas. Acredite!


Bem, depois da morte do meu sogro, Carlos e eu tivemos uma crise terrível em nosso casamento. Descobri o motivo de suas ausências e não foi fácil superar essa fase. Felizmente, soubemos separar o efêmero do duradouro em nossas vidas e, um bom tempo depois, voltamos a ser felizes. Digo um bom tempo porque não é rápido que se levanta depois de um golpe desses. Não é o sexo. Ok, não é somente o sexo. Pelo menos no meu caso, o que me enlouqueceu foi o medo de ficar sozinha, de ser preterida, de não ser a escolha de alguém. Também odiei saber que ele mentiu para mim, obrigando-me a desconfiar de cada palavra dali em diante. Odiei cada fio de cabelo de Carlos por ter me feito de idiota, por tê-la apresentado a amigos, por me humilhar publicamente. E isso não é coisa que se perdoe com um simples pedido de desculpas.  Levamos dois anos para voltar a dormir no mesmo quarto, três para ele sair novamente com os amigos e cinco para eu não quebrar a casa quando ele chegava tarde, mas superamos. Foi quando o Arturzinho precisou operar o apêndice. A dor tem esse poder de unir as pessoas. Nosso filho ali, internado com infecção generalizada, e a gente jurou nunca mais dar importância a bobagens. Saímos daquela situação mais fortes e mais unidos.


As crianças cresceram, compramos uma bela casa, meu irmão se separou, Carlos foi promovido. Ah, a estabilidade! Pudemos respirar mais aliviados, mesmo com a escola das crianças pela hora da morte, os cursos paralelos, a festa de debutante de Marisinha e a compra do carro novo. Foi por essa época que Carlos passou a ter dores constantes no abdômen. “Gastrite”, ele dizia, e tome antiácidos para suportar o incômodo. Sem perceber, os anos correram adiante e a vida seguiu. Casamos Marisa, depois o Artur, minha sogra também se foi, depois minha mãe, tio Mário e papai; nosso primeiro neto nasceu quase ao mesmo tempo em que descobrimos o tumor no pâncreas do Carlos. Foi rápido, e estive ao lado dele a todo instante, minha obrigação e meu desejo. Sozinha, depois de trinta e oito anos de casada, vendi a casa e comprei esse apartamento. Não tinha sentido morar só numa casa de cinco quartos e piscina. A solidão acabaria vencendo, teria mais espaço para se abancar.


Há quinze dias encontrei esse carocinho inconveniente no seio esquerdo e não consigo aceitar que ele não esteja aqui para me tranquilizar, como fiz tantas vezes por ele. Depois de tantos anos, de tantas coisas que passamos juntos, de ter escolhido ele quando poderia ter feito outras escolhas... e me pergunto: valeu a pena? Ora, não seja idiota! É claro que valeu!      


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