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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Dona Iolanda


Com apenas sete anos, a menina Iolanda viu um homem assassinar seu pai com três tiros pelas costas. Foi em frente ao armazém de seu Abílio, às oito da manhã, num domingo de sol escaldante, que fez com que os pezinhos da menina escorregassem dentro do sapato branco. A família voltava da missa caminhando até a casa da avó materna de Iolandinha. Tinham o costume de almoçar por lá todos os domingos, e só voltavam para casa depois do pôr-do-sol.


A partir daquele domingo cabal, tudo mudaria para a pequena, e a única coisa na qual conseguia pensar enquanto seu pai agonizava caído no chão de terra batida, era que não teria a oportunidade de entregar o desenho que fez dele sentado na cadeira da varanda contando histórias de lobisomens e bruxas más.


O pai de Iolandinha, Sr. Leopoldo Martinez, fora criado pelo avô paterno - juntamente com seus oito irmãos - e dele herdaram um amontoado de terras sem qualquer serventia para a agricultura. Como ele tinha sido o único a estudar, percebeu logo cedo que teimar com o terreno, exigindo dele que multiplicasse a cana-de-açúcar, seria um trabalho com os dias contados. Homem de negócios preferiu vender sua parte para a prefeitura fazer um cemitério. Ganhou um bom dinheiro, comprou uma casa espaçosa em um bairro um pouco mais distante do centro, onde seus filhos passaram a viver com liberdade. O restante do dinheiro investiu em imóveis na cidade e os alugava. Um deles era o armazém diante do qual havia de morrer poucos anos depois. Além do mais, era administrador da Estação Ferroviária, o que lhe rendia um bom salário. A decisão de Leopoldo criou uma ruptura entre ele e seus irmãos. Começou porque eles não aceitavam um cemitério como vizinho. As mulheres eram supersticiosas, mas os homens viram que o local perderia um pouco do valor de mercado; e ainda havia o orgulho.  Apesar de terem investido tudo o que possuíam na cultura da cana e de terem trabalhado duro, fracassaram como Leopoldo havia previsto e ficaram na miséria absoluta. Precisaram vender a propriedade por uma ninharia. O que lhes sobrou foi o suficiente para comprar um conjunto de casinhas que dividiam com mulheres e filhos. Pediram dinheiro a Leopoldo, mas depois de sucessivos fracassos o irmão não pode mais ajudar sem comprometer seu patrimônio. Ofereceu trabalho. Sentindo-se humilhados, falavam em matar o irmão quando se reuniam em festas e bebiam um pouco demais. Tanta conversa e tanto ódio incentivaram Jurandir, o filho mais velho de um dos irmãos do Sr. Leopoldo, a pegar a arma do pai no domingo pela manhã e atirar no tio com a frieza de quem chutava uma pedra do caminho.  Depois fugiu e desapareceu.


A mãe de Iolandinha, assustada com toda a tragédia que se abateu sobre sua família, vendeu suas posses e mudou com os filhos para Cabiceira do Rio Seco. Comprou um sobrado bonito às margens do rio Ité, antes do ponto das lavadeiras e terminou de criar seus filhos em paz. Infelizmente, dona Eduardina não entendia de finanças e até que seus filhos crescessem, foi gastando o dinheiro da herança, de forma que trabalhavam para comer quando Iolanda completou dezoito anos. Depois que Edgar, o mais velho, morreu de febre amarela aumentando a já enorme lista das vítimas da região, ficaram João, Iolanda e a mãe.


João arrumou um emprego como coveiro e constituiu família; Iolanda ficou em casa, cuidando da mãe até que ela morresse. Fazia alguns serviços de doméstica na cidade, mas mal dava para comer. Quando dona Eduardina morreu, Iolanda sentiu-se só e casou com um empregado da fábrica de cachaça que bebia mais que trabalhava. Antes de cinco anos de casada, pôs o traste para fora começou a alugar os quartos para moças de reputação duvidosa. Sem perceber, acabou dona do maior e mais bem frequentado bordel da região. Tinha seus casos, mas nunca se deitava com ninguém por dinheiro por ser orgulhosa demais para aceitar agrado de qualquer homem que fosse. A maioria do tempo ficava no salão térreo, conversando com os clientes e supervisionando o movimento das meninas. Quando resolvia jogar uma mão no pôquer, só continuava à mesa quem podia perder. Dificilmente se levantava do jogo sem antes levar pelo menos um homem à ruína.


A vida assim foi caminhando e sem perceber dona Iolanda se tornou querida e respeitada por todos na região, quando não por sua generosidade, com certeza por sua mão pesada e disposição masculina em entrar numa contenda. Gostava da vida que levava e das meninas como filhas, só não era feliz por completo porque ninguém o é. A imagem do pai ensangüentado e torto na calçada do armazém ainda a assombrava todas as noites em seus sonhos. Chegou a procurar pelo primo homicida durante anos, mas não obteve qualquer pista do miserável que acabou com sua família. Aceitou, por fim, que morreria sem poder vingar o pai e estava certa disso até o dia que foi chamada ao quarto de uma das meninas para acudir um cliente que convulsionava. Quando botou os olhos sobre aquele rosto contorcido e babado, percebeu imediatamente que se tratava de Jurandir, e só não caiu morta de susto porque preparara seu espírito durante anos para esse encontro.


Mandou chamar o médico que diagnosticou febre, tomou nota de todos os cuidados que deveria ter com o parente excomungado e não mediu esforços para salvá-lo daquele fim injusto para ela. Passados alguns dias, Jurandir recobrou a consciência e saiu do quadro mais grave. A menina que havia sido designada para revezar com dona Iolanda nos cuidados ao doente, desceu as escadas aos tropeções e avisou à dona da casa a vitória sobre a morte.


Iolanda sequer se abalou com a novidade. Olhando para ela não seria possível afirmar se estava feliz ou triste. Havia até certo ar de descaso na maneira como mexia a boca, mas os olhos brilhavam. Mandou que a menina ficasse em seu lugar na cozinha e foi até o quarto de Jurandir.


Quando fechou a porta atrás de si e encarou o homem não foi preciso se apresentar. Jurandir soube na hora que o dia do acerto de contas havia chegado. Tirou de debaixo do travesseiro a arma com a qual deu três tiros no tio e disse:


- Quero que seja com ela. – e passou para as mãos da prima.











 












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