Aparição era o que podíamos chamar de síntese perfeita do significado do próprio nome: alta, loira, olhos brilhando como duas jades cravadas em seu rosto e a pele de cetim; mantinha os cabelos ondulados, cortados na altura do queixo, como uma moldura dourada de seu rosto de ninfa. Suas feições delicadas e o porte de bailarina renderam-lhes a fama de ser a mais bela mulher da cidade e, justamente por esse motivo, foi disputadíssima pelos rapazes quando chegou à idade de se casar. Mas seu coração pertencia a Horácio Gentil, o amigo de infância e vizinho, por quem sempre teve uma profunda paixão.
Horácio a pediu em casamento num dia de verão, depois que nadaram no lago Terena, quando ambos tinham apenas quatorze anos. Fez um anel com a parte flexível de um galho, trançando as pontas e amarrando-as com um pedaço de linha que puxou da camisa. Colocou no dedo da menina, ajoelhado como havia visto na TV, depois beijou-lhe os lábios e só parou porque sentiu a cabeça rodar e teve medo de perder os sentidos e dar a impressão errada. Casaram-se doze anos depois, quando Horácio assumiu os negócios do pai, que lhe deixou algumas casas de aluguel e o único mercado da cidade. O casal vivia uma vida abastada e feliz, como sempre havia sonhado, até que Aparição decidiu que já era hora de ter filhos e eles não vieram, nem no primeiro, nem no segundo, nem em nenhum dos muitos meses que tentaram nos seis primeiros anos de casamento. Quando completou trinta anos desesperou-se, passou a desejar ser mãe com tanta urgência que o próprio casamento caminhava para o fim, pois não olhava mais o marido com o carinho de antes, e sim como aquele que a privava do maior de seus sonhos.
Fizeram exames e nada foi detectado que pudesse ser a causa da ausência de um bebê em seus braços, mamando em seus seios ou acordando-a no meio da noite com o choro dos necessitados. Um dia, quando o marido chegou para almoçar e encontrou-a descabelada, com as roupinhas de bebê que juntou ao longo dos anos espalhadas pelo chão da casa e a comida queimando no fogão, percebeu que a mulher enlouquecia e chamou sua irmã, Emiliana, também amiga da esposa, para ajudá-lo a cuidar de sua amada e tentar resgatar-lhe o gosto pela vida.
Emiliana deixou sua própria casa decidida a ajudar o irmão e a cunhada, mas certa de que não poderia fazê-lo sozinha. Informou-se com os amigos e soube que casos assim precisam de uma intervenção profissional, pesquisou em toda a região e descobriu que, há apenas uma hora dali, havia um psicanalista que poderia ajudá-los.
Não foi fácil convencer a cunhada de que deveria se submeter a um tratamento. Finalmente, quando lhe explicou que, em alguns casos, a mulher não engravida justamente por culpa da ansiedade em ser mãe, Aparição concordou em ir a uma consulta como última tentativa de, não só realizar seu desejo mais profundo, como também, salvar seu casamento e resgatar o amor verdadeiro que sentia pelo marido.
Acompanhada de Emiliana, chegou ao consultório de doutor Sampaio, em parte arrependida de ter se deixado convencer a estar ali, em parte curiosa com os métodos que seriam usados para descobrir qual o seu problema e solucioná-lo. Seria hipnotizada? Ou talvez o doutor lhe receitasse remédios que a fariam andar como um zumbi e se comportar como a boa menina que sempre fora? Ou então descobriria que a culpa era dos seus pais que não a amaram o suficiente, ou talvez, amassem o suficiente demais? E, por fim, regressaria à infância e despertaria horas depois, com o polegar na boca e em posição fetal, deitada num divã de couro, com a promessa de que estava curada de seus medos? Enquanto pensava nessas coisas, um homenzinho baixo e de poucos cabelos abriu-lhe a porta do consultório, dirigiu às senhoras um sorriso paterno e chamou-a pelo nome:
- Maria Aparição Lopes Gentil?
- Sou eu. – ela disse enquanto seguia em direção ao doutor – E esta é minha acompanhante, dona Emiliana Gentil. Ela também pode entrar na sala?
- Receio que não. Acompanhe-me, por favor. – e dirigindo-se à Emiliana – Ela estará de volta em uma hora.
A sala não era como imaginava. Nas paredes brancas não havia quadros, ou estantes abarrotadas de livros, nem diplomas emoldurados para comprovar a capacidade do psiquiatra; apenas um relógio na parede oposta à janela, disposto de forma que, tanto analista como analisado poderiam vê-lo se girassem levemente a cabeça para a direita ou esquerda, de acordo com o lugar onde estivessem sentados. Bem no centro havia uma mesa de madeira escura, baixa, com alguns livros, um bloco de anotações, uma caneta e uma caixa de lenços. A seu lado, uma cadeira de couro preto e, em frente a ela, um sofá de dois lugares de chenile verde-musgo. Obviamente, uma pessoa adulta não ficaria confortável deitada ali. Isso deixou Aparição confusa sobre se estava no lugar certo; mas estava.
- Sente-se, por favor – falou o doutor Sampaio, e Aparição obedeceu – O que a trouxe aqui, senhora Gentil?
Diante dessa pergunta Aparição emudeceu. Permaneceu assim durante toda a hora da consulta, e só se levantou quando o doutor lhe dirigiu a palavra novamente:
- Semana que vem, mesmo dia, mesmo horário?
Ela assentiu com a cabeça e saiu. Voltou para casa calada, com ódio, mas sem conseguir distinguir o motivo, resolvida a nunca mais por os pés no consultório daquele homenzinho arrogante que, ao invés de lhe tranquilizar o espírito, acrescentou aos seus tormentos, muitos outros com aquela pergunta infeliz: - O que a levou a buscar ajuda? O que a levou até lá? O que a levou até ele?
Passou a semana pensando em como responder aquela pergunta de forma sincera e percebeu que não era só o desejo de ser mãe, ou seus problemas no casamento. Quando começou a refletir sobre o que a fez pedir ajuda queria desesperadamente que alguém a respondesse quem era de verdade. Desde menina queria casar e ter filhos porque acreditava firmemente que estaria completa e realizada como sua mãe parecia ser. Não conhecia nenhuma mulher feliz sem uma família, a não ser a cunhada, mas não possuía a coragem e a estrutura emocional da amiga para lidar com a língua ferina e os olhares atravessados. Sua infelicidade e frustração a fez colocar em dúvida o amor antes inabalável que sentia por Horácio e pensou que, talvez devesse ter se preocupado em estudar e tentar ser independente dele. Gostaria que suas escolhas tivessem sido feitas porque realmente eram suas, mas tinha a impressão de ter se deixado levar pelos sonhos dos outros, pelos planos dos outros. Na verdade sonhava em casar e ter filhos, mas não eram seus únicos sonhos. Queria viver mil coisas numa só vida e sabia que, qualquer que tivesse sido sua escolha, lamentaria pelas opções que deixou de lado. Uma simples pergunta fez com que Aparição pensasse em tudo o que escondeu de si mesma durante toda a vida e, agora precisava descobrir a resposta para ela.
Voltou ao consultório, mas levou algumas sessões para começar a falar sobre o que a afligia. Recordou sua infância e a relação com os pais, como conheceu Horácio e a amizade com Emiliana, porque se anulou intelectualmente e jamais se formou professora como sonhara na adolescência. Falou de como admirava a mãe e de como se parecia com ela agora, obediente a um marido que não a deixava estudar ou trabalhar por ciúmes. Pensou que, talvez, um filho a deixasse ocupada o suficiente para não pensar na vida, e descobriu o quanto esse era o motivo errado. Começou a desvendar seus dramas e acreditou que não havia pessoa mais confiável no mundo que o Dr. Sampaio. Um dia, dirigiu-se para ele depois de uma sessão e perguntou:
- Você me acha bonita, Henrique?
- Você se acha bonita?
- Agora acho.
- Por que só AGORA?
- Porque você me fez me enxergar melhor. – E lançou um olhar lascivo, do qual se envergonhou depois, quando chegou a casa.
Aparição voltou a vestir-se com graça e feminilidade, coloriu o guarda-roupa e colecionou sapatos; passou a cuidar de sua aparência com prazer, e perfumava-se com flores para qualquer lugar que fosse. Passou a comprar romances e carregava sempre um sorriso estampado nos lábios, e caprichava mais nos dias de consulta, certa de que estava apaixonada e era entendida como o amor mais puro e forte que já tinha experimentado na vida e, que esse sim, era o homem que a merecia. Horácio percebeu as mudanças na esposa, mas teve medo de perdê-la e sofreu calado, suplicando a Deus que a trouxesse de volta quando tudo acabasse e ela recobrasse o juízo.
Dr. Henrique Sampaio continuou seu trabalho da maneira mais profissional que pode, mas as investidas de Aparição encontraram uma brecha nos seus muitos anos de solidão desde a morte da esposa e do único filho num acidente. Quando percebeu que a paciente invadiu seus sonhos, nua, com os cabelos loiros cobrindo os seios, e as mãos sobre a púbis qual Vênus de Milo, decidiu que a passaria para um colega e se distanciaria para salvar a carreira e a sanidade, mas, quando olhava em seus olhos enigmáticos, suplicantes de ternura e redenção, desejosos de amor e confusos, fraquejava como jamais antes na vida e sentia o coração descompassar, certo de que não poderia viver sem as duas pedras de jade fixadas em sua própria retina. Adiava a decisão de abandonar o caso, e sabia que era a decisão errada porque já não distinguia no que ajudava e no que era prejudicial à mulher que o revirou pelo avesso, depois de tantos anos de imparcialidade e profissionalismo.
Quando relatou ao seu analista o que estava acontecendo, foi orientado a por um fim neste despropósito o mais rápido possível, para seu próprio bem. Sem forças para tomar tal atitude, resolveu distanciar-se gradativamente e, comunicou a Aparição que viajaria por duas semanas para um seminário e que só voltaria a atendê-la dali a quinze dias.
Para ele esses dias foram de saudades e tormentos. Sentia-se como um viciado em reabilitação, passando por todas as fases das crises de abstinência. Entregou-se ao desespero e resolveu que precisava acabar com esse suplício. Chegou ao fim das duas semanas, seguro de que o certo a fazer era transferir sua paciente a um colega e descansar alguns dias no campo até que tudo não passasse de uma lembrança ruim.
Só não contava com o que encontraria ao retornar ao seu consultório para receber Aparição no que seria uma despedida. Em seu íntimo, sabia que o que deveria fazer não era o que desejava, e pensava que, por mais difícil que fosse romper, a resistência de Aparição o consolaria. Qual não foi sua surpresa ao receber, no lugar da moça, um envelope endereçado a ele, de dentro do qual tirou uma carta que leu com a porta fechada e um aviso para não ser incomodado:
Doutor Sampaio colocou a carta no envelope e guardou-a em sua gaveta, fechada à chave. Deixou-se cair na cadeira e sentiu um misto de alívio e dor. Ligou para os empregados do sítio e deu ordens para preparar a casa, pois chegaria em dois dias para uma temporada no campo.
Enquanto isso, na casa da família Gentil, Aparição entregava-se ao marido com o ardor das primeiras núpcias. Reafirmou seus votos de esposa apaixonada e tirou de dentro do porta-joias a aliança de galho que Horácio lhe dera há tanto tempo, deixando o marido emocionado. Pouco tempo depois, enquanto voltava da faculdade, sentiu os primeiros enjoos e percebeu que seu maior sonho estava a caminho. Agradeceu aos Céus que estivesse pronta para receber o milagre.