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sábado, 27 de agosto de 2011

Isadora Carmesim



O prédio da rua 1º de Agosto tinha um aspecto de velho e sujo que destoava das construções vizinhas. Ficava exatamente no centro do quarteirão, na área que antes pertencia aos novos ricos; era ladeado por casas de arquitetura nova, o que deixava claro que ele era a única parte não reformada de um conjunto de casas e prédios concedidos pelo governo aos imigrantes que lutaram ao lado do poder pela consolidação do Regime Republicano. A maioria dos moradores era composta de mulheres gordas e falastronas; seus maridos, ao contrário, eram macilentos e cansados, de corpos curvados e olhos encovados, a maioria com a cara de espanto que as guerras conferem às pessoas. Os filhos deles, crianças coradas e sorridentes, ou adolescentes calados, de hábitos estranhos aos pais e que andavam em bandos pelas ruas do bairro sem uma ocupação depois da escola. A única exceção aos moradores do “prédio dos poetas”, assim chamado por ter sido reduto dos domadores de versos e da boemia do século anterior, era Isadora Carmesim.


Dorinha, – como era conhecida a mulher do Tenente Paiva – tinha a beleza sedutora das fêmeas que conhecem o amor; trazia os cabelos castanhos claros soltos em cachos na altura dos ombros, os vestidos escuros contrastavam com a pele de alabastro, e eram tão justos que evidenciavam cada medida perfeita do corpo da jovem. As pernas lembravam duas torres que, unidas, guardavam em seu topo os segredos que fariam qualquer rei entregar o trono, mas no rosto, apesar dos olhos castanhos que, uma vez postos sobre alguma criatura prendiam-na de tal modo que ficava à mercê dos maiores perigos, a tristeza se hospedou como quem não fosse mais embora, levando-lhe o sorriso sincero de quando se mudou para ali.  Uma vez por mês, no aniversário de casamento, Dorinha colocava seu melhor vestido vermelho e se sentava à mesinha da varanda imaginando-se acompanhada do marido. Havia anos que a guerra acabara e o Tenente desaparecera a caminho de casa. Isso foi para Isadora pior que receber o corpo do marido morto como tantas outras a sua volta, e ela esperava todos os dias por uma notícia, qualquer que fosse que a tirasse daquele suspense constante. Por nunca ter conseguido provar que o marido de fato morrera Dorinha não pode jamais receber uma pensão.  Para sobreviver passou a fazer doces e bolos para festas, e era tão requisitada que as encomendas precisavam ser feitas com três meses de antecedência. As crianças da vizinhança costumavam acompanhá-la quando passava pela rua para sentir o perfume de chocolate que exalava da mulher e, não raro, ela distribuía bombonzinhos que tirava da bolsa.


Na manhã do décimo sexto aniversário de desaparecimento do Tenente Paiva, Dorinha recebeu flores, uma garrafa de seu vinho preferido e um bilhete que dizia: “Venha sem fazer alarde”. Seu coração há tantos anos esperando por uma trágica notícia, se encheu de esperanças novamente e quase não pode suportar a impressão de que poderia estar enganado. Sentiu que o marido voltava para ela e não demorou a atender ao pedido, de vestido vermelho, flores no cabelo e perfume entre os seios.


Quando chegou ao local do encontro - o restaurante do hotel mais caro da cidade - percebeu que se tratava mesmo de seu marido. Apesar da grande barba grisalha, dos cabelos crescidos e das roupas caras, jamais o confundiria com qualquer outro homem no mundo. Conversaram. O Tenente explicou que resolveu seguir com um grupo de oficiais que, juntos, partiram em busca de um tesouro lendário, que um índio - rastreador do exército – contou existir numa noite de muita bebida e pouca ação. Assim que a paz foi anunciada, enquanto todos voltavam para casa, ele e seus companheiros empreenderam uma busca ao tesouro. Ficaram perdidos na mata, passando frio e fome, fugindo de homens e bichos. Alguns não resistiram e morreram pelo caminho. Quando estavam prestes a desistir, encontraram a fortuna e ela era incalculável. Repartiram entre si, mas a viagem de volta foi mil vezes pior que a de ida. Além dos inimigos já citados, tiveram que se resguardar da ganância dos companheiros e lutar para resistir à própria vontade de ficar com todo o ouro.


Quando conseguiram chegar a uma cidade e se hospedar em um hotel, o Tenente foi surpreendido pelos acompanhantes que tentaram lhe roubar. Os três lutaram e o Tenente conseguiu dominar os adversários, mas num impulso de ganância e desejo de vingança, pegou todo o ouro que havia e abandonou os homens amarrados e amordaçados no quarto do hotel. Depois disso não teve mais sossego e precisou fugir para não ser capturado. Esteve próximo de casa por duas vezes, mas percebeu que a mulher estava sendo vigiada e resolveu não se arriscar. Há seis meses soube que os oficiais haviam morrido. Depois de uma pequena investigação, viajou de volta para buscar o maior de todos os tesouros.


O Tenente pediu a Dorinha que não voltasse ao apartamento para buscar nada, por precaução. Prometeu que lhe daria coisas muito melhores. Deviam partir no dia seguinte para a mansão que ele havia construído especialmente para os dois durante os anos de exílio.


Isadora aceitou de imediato. Passaram a noite acordados, matando as saudades acumuladas e fazendo planos para a nova vida. De manhãzinha, antes mesmo que o sol dispersasse a neblina da madrugada, o casal partiu em direção ao Norte do país para viver quase à fronteira, numa casa belíssima e enorme, protegida por seguranças e uma densa mata.


O caso é que dezesseis anos não são dezesseis dias e, com o passar do tempo, o Tenente Umbelino Paiva se mostrou inconstante e com idéias persecutórias. Passava o dia checando os planos de fuga de emergência, ou verificando se as travas da casa ainda funcionavam. Treinava cães para atacar caso a propriedade fosse invadida e não permitia que Isadora saísse sob nenhuma condição. Nunca dormiam juntos, pois ele gostava de pernoitar na câmara subterrânea que construiu para guardar parte do que possuía.


Isadora percebeu que o marido havia se tornado escravo do dinheiro e da vida de foragido que levara por tanto tempo. Acostumou-se ao papel e não soube abandoná-lo. Não reconhecia mais o homem leve e protetor de antes, que teria feito qualquer coisa para estar a seu lado. Vivia agora com dinheiro, mas nem por isso tinha a vida confortável que o Tenente havia prometido.


No terceiro mês de convivência, exatamente no primeiro dia, Dorinha colocou seu vestido vermelho, preparou uma mesa para dois na varanda e imaginou-se acompanhada do marido; não daquele que dormia no porão, mas do outro, do que não voltou da guerra.  E esperou até o último de seus dias.







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